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domingo, 7 de agosto de 2011

** Moniz Bandeira: "Legalidade foi o primeiro levante civil a impedir golpe"

 
Moniz Bandeira: "Legalidade foi o primeiro levante civil a impedir golpe"
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
A Campanha da Legalidade não deixou nenhum legado, pois o golpe frustrado em 1961 aconteceu em 1964. A avaliação é de Luiz Alberto Moniz Bandeira, 75. Como repórter, ele testemunhou, de Brasília, a crise da renúncia de Jânio Quadros e os debates para a implantação do parlamentarismo.
Historiador e cientista político, ele é autor de livros como "A Renúncia de Jânio Quadros e a Crise Pré-64" [Brasiliense, 1989] e "O Governo João Goulart - As Lutas Sociais no Brasil (1961-1964)" [Civilização Brasileira, 1977].
Nesta entrevista, Moniz Bandeira analisa a crise militar desencadeada pela Campanha da Legalidade e a adesão do Terceiro Exército ao movimento contra o golpe.
Folha - Qual o significado político e militar da Campanha da Legalidade? Qual o seu legado?
Luiz Alberto Moniz Bandeira - A Campanha da Legalidade possibilitou que, pela primeira vez na história do Brasil, um levante civil, ao qual 3º Exército aderiu, impedisse um golpe de Estado. Não creio que tenha deixado nenhum legado pois o golpe militar, frustrado em agosto/setembro de 1961, foi consumado em 1° de abril de 1964.
O sr. concorda com a avaliação de que a campanha causou uma cisão inédita nas Forças Armadas brasileiras?
Sempre houve distintas tendências políticas nas Forças Armadas, porém os militares, na sua imensa maioria, tinham formação legalista e de respeito à hierarquia e à disciplina. Um dos pressupostos da Aliança para o Progresso, lançada pelos EUA há 50 anos, era não reconhecer governos que resultassem de golpes de Estado ou revoluções e não obedecessem às normas do regime democrático-representativo. Esse pressuposto colidia com a diretriz do Pentágono, que, considerando as Forças Armadas como a organização social mais estável e modernizadora na América Latina, promoveu a mutação na estratégia de segurança continental, com a doutrina da Civic Action (Ação Cívica). Essa doutrina incentivou os militares a participarem da política interna em seus respectivos países, a fim de conter um suposto avanço do comunismo.
Como explicar a conduta do comandante do Terceiro Exército naquele momento?
O general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, relutou a princípio em aderir ao movimento. Disse que era um soldado e que cumpriria ordens. Porém, tinha formação legalista e, com o levante popular promovido pelo governador Leonel Brizola e com a mobilização da Brigada, ele deve ter percebido a justa causa da campanha.
Jango e Brizola divergiram naqueles dias. Quem tinha razão? Como o sr. os define?
Divergências entre Jango e Brizola sempre ocorreram. Os dois tinham temperamento e estilo político diferentes. As variáveis são muitas e avaliar a razão de um ou de outro não passaria de especulação. Estou convencido, porém, de que a marcha sobre Brasília defendida por Brizola não seria simples passeata. Haveria luta armada. Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, tinha apoio militar e estava envolvido na articulação do golpe.
A mobilização, que incluiu a distribuição de armas à população, é comparável a outros episódios da história brasileira?
Brizola não distribuiu armas a toda a população. A Brigada Militar distribuiu apenas 2.000 revólveres, calibre 38, com uma caixa de balas, mediante recibo. E pediu à indústria Taurus que aumentasse sua produção de armas, inclusive metralhadoras leves. Foi um ato heroico, porém não haveria condições para um enfrentamento armado se o 3º Exército não aderisse à campanha.
Como o sr. acompanhou os fatos naquele momento?
Eu estava em La Paz, hospedado na residência do embaixador do Brasil, Mario Antônio de Pimentel Brandão, quando ele me mostrou telegramas do Itamaraty sobre o agravamento da crise política. Decidi regressar imediatamente ao Brasil. No dia 25 de agosto, tomei o avião para Santa Cruz de la Sierra, onde embarquei para o Brasil, em aparelho da companhia Cruzeiro do Sul. E, ao chegar a São Paulo, por volta das 14h, escutei a notícia de que Jânio Quadros renunciara à presidência da República, pois Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, havia denunciado pela televisão que ele estava a articular um golpe contra as instituições, a fim de adquirir poderes especiais, por meio do ministro da Justiça, Oscar Pedroso d'Horta. Com as informações que possuía, foi-me fácil concluir que Lacerda havia lancetado o tumor. Viajei então para o Rio, e João Dantas, o proprietário do "Diário de Notícias", onde eu era editor político, mandou que fosse imediatamente para Brasília acompanhar a evolução da crise. Acompanhei os acontecimentos de dentro da Câmara dos Deputados, pois o deputado Sérgio Magalhães, meu amigo pessoal e em cujo apartamento sempre me hospedava, assumira a presidência do Congresso quando o deputado Ranieri Mazzilli foi investido na presidência da República. Tinha muitas informações de bastidores e cujas fontes (muitas das quais militares) não podia revelar. Assim, dois meses após a renúncia, em novembro, publiquei o livro "O 24 de Agosto de Jânio Quadros", no qual deslindei o enigma, ao mostrar que ele renunciou à Presidência da República esperando voltar ao governo com o apoio das multidões. O respeitável jornalista Carlos Castelo Branco, seu secretário de imprensa, ouviu-o dizer a Francisco Castro Neves, ministro do Trabalho: "Não farei nada por voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo".
Como o sr. acompanhou Jânio Quadros?
Em janeiro de 1960, com 24 anos, eu era redator político do "Diário de Notícias", e seu diretor determinou que eu acompanhasse Jânio na campanha eleitoral, que ele estava a começar. Nunca fui simpatizante, muito menos partidário de Jânio. Porém, não podia deixar de cumprir a ordem. Viajei com Jânio seis meses, durante todo o primeiro semestre de 1960. Na viagem, escutei diversas vezes Jânio declarar que processaria o Congresso perante o povo, promoveria sua responsabilidade, caso ele não lhe desse as leis que pedia, culpando-o pela situação do país. Jânio manifestava o inconformismo de ter de governar dentro dos marcos constitucionais. Repetia que não poderia governar "com aquele Congresso". A Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, Jânio disse que, "com aquele Congresso", dominado pelos conservadores, não poderia avançar para a esquerda, tomar iniciativas para reformar as instituições e promover a transformação da estrutura econômica e social do país, com a limitação das remessas de lucros para o exterior, a criação de uma lei antitruste e a implantação da reforma agrária. Precisava, portanto, de poderes extraordinários. Seduzido, Brizola comentou com o ex-presidente Juscelino Kubitschek o objetivo de Jânio Quadros e sua disposição de apoiá-lo. Porém, com Carlos Lacerda, a conversa era diferente, embora a conclusão fosse a mesma. "Com aquele Congresso", dentro do regime democrático, não poderia governar, sem fazer "concessões às esquerdas e apelar para elas". Necessitava, em conseqüência, de poderes extraordinários. Percebi que sua pretensão era jogar a opinião pública contra o Legislativo e, provavelmente, dar um golpe de Estado sui generis. A deflagração da crise, portanto, não me surpreendeu.

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/955466-legalidade-foi-o-primeiro-levante-civil-a-impedir-golpe-diz-moniz-bandeira.shtml

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Fabrício Augusto Souza Gomes

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    ** "Legalidade mostrou que sociedade organizada impede golpe", afirma historiador

     
    "Legalidade mostrou que sociedade organizada impede golpe", afirma historiador
    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    "A Junta Militar apertou o botão para disparar o golpe, mas a sociedade reagiu e não concordou", assim o historiador Jorge Ferreira resume os resultados da Campanha da Legalidade desencadeada há 50 anos para lutar pela posse de João Goulart na Presidência da República.
    Ferreira, 54, autor de "João Goulart, uma Biografia" [Civilização Brasileira, 2011], destaca a força decisiva das organizações civis no movimento. "Golpes não dependem da vontade de generais, mas exigem apoio social", enfatiza.
    Nesta entrevista, Ferreira, professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, narra momentos cruciais da campanha e analisa a crise militar.
    *
    Folha - Qual é o legado do movimento pela legalidade 50 anos depois?

    Jorge Ferreira - O legado foi o de mostrar que havia, na sociedade brasileira, um forte apego pela manutenção das instituições da democracia representativa instauradas pela Constituição de 1946. Em agosto/setembro de 1961, a sociedade brasileira não quis golpes de Estado. Não se tratou apenas da liderança de Brizola ou do levante no Rio Grande do Sul. Em todo o país, diversos sindicatos de trabalhadores declararam greve pela posse de Goulart. Organizações camponesas no nordeste brasileiro também protestaram. Empresários, por meio de Federações de Indústrias e Associações de Comércio apoiaram a continuidade do processo democrático. Organizações estudantis, como a UNE, UBES E UMES, fizeram o mesmo. Todos os partidos políticos no Congresso Nacional, incluindo a UDN, exigiram a posse de Goulart. A OAB, a ABI, A CNBB, mas também federações umbandistas e até diretorias de clubes de futebol repudiaram o golpe. A imprensa, majoritariamente, apoiou a legalidade (apenas "O Globo", "O Estado de S. Paulo" e "Tribuna da Imprensa" apoiaram o veto a Goulart). Ao final, as Forças Armadas se dividiram. Uma coisa era muitos oficiais não gostarem de Jango; outra, diferente, era rasgar a Constituição e impedir a posse do vice-presidente eleito constitucionalmente. Em outras palavras, a Junta Militar apertou o botão para disparar o golpe, mas a sociedade reagiu e não concordou. Até mesmo parte considerável das Forças Armadas não aceitou o golpe. Como sabemos, golpes não dependem da vontade de generais, mas exigem apoio social. Então, vemos, em 1961, a sociedade brasileira apegada aos valores democráticos e constitucionais. Esse é o grande legado. Mas também vemos que não existe aquela imagem da "sociedade de massas" conduzida por líderes "populistas". A crise da legalidade nos mostra, sim, a sociedade brasileira organizada. Empresários, trabalhadores urbanos, camponeses, estudantes, profissionais liberais, religiosos etc., organizados em suas entidades representativas. Nesse sentido, cai por terra a tese de que o regime de 1946-1964 foi uma "democracia populista" ou uma "república populista". O regime foi de democracia-liberal ou democracia representativa. E imbuída de valores democráticos. Pronto. Agora, porque, em menos de três anos, essa mesma sociedade assistiu de braços cruzados, sem reação, recrutas liderados por um general sem prestígio marchando de Juiz de Fora para a Guanabara com objetivo de depor o presidente da República, é outra história.
    Como o sr. analisa o ineditismo da campanha, ao provocar uma cisão nas Forças Armadas. Como o sr. explica a posição adotada pelo comandante do 3º Exército naquele episódio? Qual era a sua formação? Por que ele resolveu apoiar Brizola? Como era atuação dos grupos de esquerda dentro das Forças Armadas?

    No período 1945-1964, conviviam nas Forças Armadas diversas tendências políticas, da direita à esquerda. Se havia militares direitistas golpistas, havia também muitos oficiais comunistas, janguistas e brizolistas. Na crise política gerada pela renúncia de Jânio Quadros, o general José Machado Lopes tomou decisão junto com o Estado-Maior do 3º Exército. Para obedecer à Junta Militar golpista, ele teria que bombardear o Palácio Piratini, matando todos que lá estavam, incluindo o governador Brizola. Depois, teria que impor a "ordem" no Rio Grande do Sul. Para isso, ele teria que cometer verdadeira chacina. A população gaúcha estava em estado de revolta na capital e no interior. Há de se considerar que o militar é obrigado a obedecer à hierarquia e à disciplina, mas não é obrigado a cumprir ordens absurdas. Assim, entre cumprir a Constituição e evitar ser responsável por milhares de mortes, ele preferiu estar ao lado da legalidade.
    A questão da distribuição de armas à população durante a campanha parece ser um ponto obscuro. O sr. tem mais dados a respeito? As fábricas de armamentos localizadas no RS foram também mobilizadas?

    A população de Porto Alegre e das cidades do interior gaúcho mobilizou-se para a defesa da legalidade. Na capital, cerca de 45 mil pessoas se alistaram para a formação de batalhões populares. Brizola requisitou nas lojas de armas da capital mil revólveres e os distribuiu a quem desejasse. É interessante que, ao final da crise, todos os que receberam as armas as devolveram. A Brigada Militar gaúcha tinha em seus arsenais uma grande quantidade de fuzis e metralhadoras. Eles foram comprados no início dos anos 1930 pelo governador Flores da Cunha, no caso de enfrentamento com Vargas. Depois, a Brigada Militar (a PM gaúcha), para evitar o confisco das armas pelo Exército Brasileiro, as manteve escondidas. Todos os alistados que quisessem armas recebiam os revólveres e os fuzis e tinham rápida aula de tiro com instrutores da Brigada Militar --incluindo aí mulheres e comunistas. O que ocorreu, de fato, foi que Brizola armou a população em Porto Alegre. No interior, o trabalho foi feito pelos Centros de Tradições Gaúchas, mas nesse caso com armas artesanais, como lanças, arcos e flechas, facões etc.
    A situação em que o general Machado Lopes canta o hino nacional também não é muito abordada. O sr. tem mais detalhes?

    O relato que tenho é esse: o comandante do 3º Exército, Machado Lopes, junto aos generais de seu Estado Maior, comunicou a Brizola que iria ao Palácio Piratini conversar com ele. Para Brizola, Machado Lopes tinha o objetivo de depô-lo do cargo. Brizola armou assessores e alguns funcionários mais próximos. Se Machado Lopes desse ordem de deposição, os assessores sacariam as armas e prenderiam os generais. Tendo-os como reféns, Brizola desafiaria a Junta Militar a bombardear o Palácio Piratini. O fato é que Machado Lopes e os generais chegaram em um jipe. Nas escadarias do Palácio e, diante deles, havia cerca de 100 mil pessoas. O silêncio era enorme. Quando eles subiam as escadas (permitindo que a população os vissem), alguém começou a cantar o hino nacional. Machado Lopes e os generais pararam, viraram-se para o povo, botaram a mão no peito (na altura do coração) e também cantam o hino. Milhares de pessoas choraram nesse momento.
    Do ponto de vista da história militar, qual é a relevância? Quem poderia ser ouvido sobre esse ponto?

    Pois é, boa pergunta. Trata-se de história ainda a ser construída. Creio que três livros de memórias são importantes: um, o do próprio José Machado Lopes. O outro, o do Odílio Denys. Ele, na época, era o Ministro da Guerra (atual ministro da Defesa) e, se não me engano, tem um livro publicado. O terceiro é o do Cordeiro de Farias. Ele foi nomeado por Denys para chefiar as forças militares para combater o 3º Exército.


    http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/955485-legalidade-mostrou-que-sociedade-organizada-impede-golpe-afirma-historiador.shtml


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    Fabrício Augusto Souza Gomes

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      ** "Ideia da Legalidade era repetir Revolução de 30", diz ex-líder do PTB

       
      07/08/2011 - 08h15
      "Ideia da Legalidade era repetir Revolução de 30", diz ex-líder do PTB
      ELEONORA DE LUCENA
      DE SÃO PAULO

      A Campanha da Legalidade impediu o golpe que queria vetar a posse de João Goulart em 1961. Mas queria fazer mais: repetir a Revolução de 30, fazendo uma marcha para que Jango não tivesse que se submeter ao parlamentarismo.
      Quem faz a análise daquele momento turbulento é Almino Affonso, 82. Na época, ele era líder do PTB, o partido de Jango --com quem discutiu a adoção do parlamentarismo. Como o governador Leonel Brizola, que liderava a ação contra os golpistas, Almino queria que Goulart assumisse com plenos poderes, como estabelecido na lei.
      Hoje, 50 anos depois, ele reconhece que Jango tinha razão em negociar e evitar uma guerra civil. Almino, que depois foi ministro do Trabalho e Previdência de Goulart, prepara outro livro sobre o período.
      Nesta entrevista, ele fala dos dias tensos no Congresso e nas ruas, e expõe o que considera as razões de fundo do conflito: a herança de Getulio e o nacionalismo.
      *
      Folha - Onde o sr. estava em 25 de agosto de 1961?

      Almino Affonso - Era deputado federal, líder do PTB. Líder da oposição ao governo Jânio Quadros. Estava no meu gabinete e vi um verdadeiro tropel de jornalistas a correr, parlamentares a correr. Jânio era uma pessoa de difícil compreensão, desmerecia o Congresso, era agressivo muitas vezes. Fui ao plenário e um deputado do Espírito Santo lia os documentos de renúncia: um manifesto à nação e uma declaração simples. Fui o segundo a falar. Analisei o documento de uma forma quase mediúnica. Jânio falava das Forças Armadas em ordem. Agradecia ao empresariado, aos trabalhadores. Era um documento contraditório. Porque ele revelava uma tranquilidade para governar, um apoio significativo das forças sociais e, não obstante, considerava inviável governar e renunciava. Fiz a análise do paradoxo entre a renúncia e a revelação de que ele tinha tudo em perfeita ordem. Escrevi isso no me livro "Raízes do Golpe". Como não há uma explicação que justifique o gesto, eu só posso entendê-lo como algo em que ele joga o país numa crise e, no bojo dela, ele pretenda retornar ao poder na plenitude de um poder ditatorial. Isso eu disse instantaneamente, imediatamente. O debate no Congresso incendeia e usei a seguinte frase: o presidente renuncia, o vice está na China em missão oficial. Não estava no país, mas, pela norma, era um cidadão em condições de assumir a presidência. Disse assim: o presidente renunciou; a renúncia está aceita, assume o presidente da Câmara dos Deputados, Rainieri Mazzili, em caráter provisório, enquanto se aguarda a presença do presidente que está no exterior para assumir o cargo de presidente em definitivo. Eu não discutia a aceitação ou não da renúncia. Não estava pondo em dúvida a renúncia. Gustavo Capanema me pede um aparte: a renúncia é um ato unilateral, não cabe discuti-la. Ficou claro que a renúncia era um fato definitivo, não cabia ao congresso discutir. Mazzili assumiu em caráter provisório enquanto se aguardaria a chegada de Jango.
      Jânio tinha a intenção de que a renúncia não fosse aceita?

      Você me pergunta qual era o sentido da renúncia do Jânio? Era definitiva, era um ato de insegurança psicológica? Ou, como na hipótese que eu tinha levantado, no bojo disso ele esperaria um clima de convulsão política e social --ele tinha um grande prestígio popular-- que lhe devolvesse o poder não no sistema vigente da Constituição de 46, mas com um poder absoluto. Na minha opinião, de forma intuitiva, tinha considerado que era um golpe que ele tinha tentado através desse gesto. Depois eu li o livro "História do Povo Brasileiro", do próprio Jânio e de Afonso Arinos de Melo Franco, que tinha sido ministro das Relações Exteriores. No capítulo quinto, que trata da renúncia, ele narra o procedimento claramente: se estimou que em termos constitucionais era impossível governar. Faço um parênteses. Isso é absurdo. Ele não podia alegar que houvesse uma incompatibilidade entre os poderes legislativo e executivo. A UDN não se agradava dos gestos de Jânio na política externa (negociação para reatamento com a URSS, condecoração de Che Guevara etc). Quem dava apoio a Jânio nessas matérias era o PTB, eu. Não havia necessidade de renunciar.
      Essas posições também desagradam os militares.

      Mas ele agradece aos militares.
      Ele não esperava um gesto dos militares?

      Sem nenhuma dúvida. Jânio diz no seu livro que para isso estava ausente o Jango. O país estaria acéfalo. Portanto a decorrência é que ele voltaria ao poder, na plenitude do poder. Por que isso não se deu? O desdobramento disso não teve no gesto nas Forças Armadas; não se consumou o planejado.
      Como o sr. explica a Legalidade e a posição do 3º Exército?

      Fica claro que os militares têm um veto absoluto à volta de Jango ao país. Parlamentares como Doutel de Andrade e Rui Ramos ouvem [a ameaça] de Denys. Rui Ramos revelou isso da tribuna da Câmara. O general Teixeira Lott, que tinha sido ministro da Guerra de JK, numa nota, revela que tinha sido feito um apelo aos militares para que respeitassem a ordem constitucional. Ele foi preso imediatamente. Denys manda prendê-lo. Lott foi preso por conta dessa declaração de resistência. Brizola protesta contra tudo isso e exige que Jango tome posse na plenitude de poderes, no regime presidencialista. Isso levanta o RS emocionalmente de uma forma fantástica na campanha da Legalidade. É o povo nas ruas. Brizola com apoio popular fantástico e com o apoio ostensivo da Brigada Militar. Em Gpoás, levanta-se a palavra de Mauro Borges, que coloca a sua PM em pé de guerra para dar posse ao presidente. Os outros ou estavam contra mas em silêncio ou apoiaram as posições dos militares. A resistência propriamente militar se deu no RS e em Goiás. O fato novo e significativo ocorre quando Orlando Geisel dá ordens para que a Aeronáutica da Base Aérea de Canoas bombardeie o Palácio Piratini. Isso foi contado na rádio que o Brizola incorporou. Havia uma audiência nacional. O país inteiro acompanhava. Meus pais moravam em Porto Velho e eles ouviam pelo rádio e me narravam depois. A Base Aérea não pôde executar a ordem porque os sargentos se rebelaram, furaram os pneus dos aviões etc. Tornaram impossível que os aviões decolassem. O comandante Machado Lopes, num certo momento, ao ver a população, toma um gesto fantástico e pede uma audiência com Brizola. Vai ao palácio e hipoteca apoio à tese da Legalidade, à posse plena de Jango no poder.
      O Exército tinha uma parte golpista e outra legalista.

      Sem dúvida. Os generais das bases do Rio Grande do Sul, onde o Exército sempre foi mais forte pelo fato de as fronteiras serem lá, consideram um absurdo bombardear o palácio. Com o apoio de Machado Lopes, o Estado em pé de guerra. Não houve nada parecido em outras divisões do Exército. Houve algo em Belém, uma rebelião dos sargentos em defesa da Legalidade. Jango vai para Montevidéu. Começa a haver um movimento político entre os diversos partidos, com exceção do PTB, de que isso se convertesse num golpe militar. A volta de Jânio não entrou no debate. Havia concretamente um veto a Jango. Não dá para analisar esse episódio sem se dar conta que é uma história que vem lá do Getulio.
      Do Jango no Ministério do Trabalho, as mobilizações defesa do aumento do salário mínimo?

      É o Getulio de 1950 de volta, o monopólio estatal do petróleo, que criava cisões. Muitas lideranças militares não eram a favor do monopólio estatal. Quereriam a abertura para outras empresas, diziam que não tínhamos dinheiro pra fazer isso [explorar petróleo], o que implicava a participação do capital internacional, Shell etc. Eram ostensivamente contrários ao monopólio estatal. Isso vem lá do Getulio. Também é dele a Eletrobrás, o que acabava com a Light. Nos bastidores do governo havia uma história antiga que vai além do Jango, mas do Jango herdeiro daquele getulismo. Sem esse tipo de análise fica pobre, parecendo um veto anti-Jango strito sensu. Nasce no meio disso a discussão do parlamentarismo. Jango já em Paris e me telefona. Faz consulta sobre o parlamentarismo, quer saber a minha opinião, como a bancada reagiria. Eu, pessoalmente, sou parlamentarista no sentido histórico. Respondi que, naquelas circunstâncias, considerava um golpe de Estado. Porque era uma forma de impedir a posse de alguém legitimamente eleito. Mas que eu teria que conversar com a bancada. Jango diz que está longe do quadro."Só posso dizer que não me nego a dialogar", disse. Tínhamos mandado a Paris um mensageiro para mandar um apelo para que ele não voltasse diretamente ao Brasil. Foi o Carlos Jereissati, o pai desse senador [Tasso Jereissati (PSDB-CE)]. Carlos Jereissati foi a Paris levando essa mensagem: aguarde os desdobramentos dos fatos. Ele fez isso. Foi até Montevidéu. Evoluia, enquanto isso, nos setores anti-getulistas a ideia do parlamentarismo. Havia na própria bancada [do PTB] pessoas que achavam que era o momento de criar o parlamentarismo. San Tiago Dantas passou a ser um líder dentro do PTB do parlamentarismo. Foi criando consistência a tese do parlamentarismo. A liderança de oposição a isso fui eu. Chamei de golpe branco. Porque a Constituição da República não poderia ser emendada num clima de convulsão política, de guerra intestina. Não cabia alterar, era ilegal, inconstitucional. Jango já em Montevidéu, os favoráveis ao parlamentarismo entregam a Tancredo Neves a tarefa de ir a Jango e ganhar dele a posição final. Eu digo a eles: não tem sentido que vá um emissário da tese parlamentarista e não vá um emissário da tese contrária. Mando uma carta a Jango em que eu me oponho e dou as razões. Eu dizia: atravesse a fronteira presidente, venha em marcha batida e aí faremos o governo com as transformações sociais etc.
      O sr. se alinha a Brizola?

      O Brizola não tinha a imagem tão contraditória como eu acho que teve depois. Sim, nesse caso tinha uma posição rigorosamente igual a do Brizola.
      A campanha da legalidade, a posição de Brizola e do 3º Exército impediram o golpe?

      Eu diria que sim, porque se não tivesse prevalecido o sistema parlamentarista, contra o qual eu lutei, e prevalecesse a tese de que o Jango não poderia tomar posse, quem tomaria posse? Quem tivesse armas para poder chegar lá.
      Essa crise apenas adiou o golpe de 64?

      Eu acho que sim. Mas essas perguntas são sempre pão-pão-queijo-queijo. Todas elas têm um sim e um não e suas variantes. Estou escrevendo um livro sobre isso, estou pela metade. Até o final do ano fica pronto. Com depoimentos, fatos que eu vivi. Vai se chamar "João Goulart, uma revisão da história". Eu estava no cerne, no lugar, na hora. Parlamentarismo cresce e eles concordam que eu mande um emissário. Eu designo o deputado Wilson Fadul [que depois foi ministro da Saúde de Goulart]. Ele vai para o aeroporto na hora combinada, mas o Tancredo já tinha voado. Tenho enorme admiração pelo Tancredo, mas esse não foi um gesto correto. Não tivemos condições de subsidiar o Jango lá em Montevidéu. Por telefone era impossível. Minhas cartas não chegaram a Jango e ele acaba aceitando a tese de transição. Um setor do PTB que passou a apoiar o parlamentarismo conseguiu um termo de acordo das forças que apoiavam o parlamentarismo: estabelecer no ato adicional do parlamentarismo uma norma que previa um plebiscito. Isso foi uma conquista da parte da banca trabalhista que apoiou o parlamentarismo. Há uma reunião histórica da bancada que eu presidi. Fico emocionado ao lembrar. San Tiago fez o discurso a favor do parlamentarismo. Ganhamos com a maioria, mas não a totalidade. Pelas regras da bancada só poderíamos fechar a questão com maioria absoluta. Não conseguimos. A solução era tolerar aqueles que quisessem votar no parlamentarismo. Eu assumi o comando contra e San Tiago a favor do parlamentarismo na bancada.
      Tudo isso e Jango em Montevidéu. Quando foi para Porto Alegre não discursou, por causa do acerto com Tancredo, e foi vaiado. Houve muita frustração em Porto Alegre?

      Sim, a massa na rua, a decepção quando Jango chega e não adere à tese da luta armada.
      A ideia era fazer uma nova Revolução de 30, marchar para o centro do país?

      Exatamente. Era ir marchando como Getulio fez. Por que Jango não aceitou? O Jango --e isso eu ouvi dele mais de uma vez porque fomos companheiros de exílio, em Buenos Aires e no Uruguai, 12 anos de exílio-- dizia para si próprio: "Eu vou para uma guerra civil em nome de eu assumir o poder? Não quero isso".
      Foi a posição que ele teve também em 64, não?

      Exatamente. Quando eu disse que era favorável que ele viesse marchando, hoje eu penso diferente. Acho que ele teve o bom senso. Alguns dizem que foi frouxo. Eu digo, não. Foi um gesto de grandeza, de quem diz: "Eu quero, sim, assumir o poder, porque é legítimo, porque eu fui eleito duas vezes vice- presidente". Ele tinha legitimidade para assumir, mas não queria o sangue e eu acho isso nobre. Na época eu tinha 32 anos. Hoje eu tenho 82 e é razoável que eu pense mais suavemente.
      Qual o significado da Legalidade 50 anos depois?

      Mostra como ainda estávamos numa etapa democrática muito pobre a ponto de não poder aceitar a normalidade institucional. O presidente renuncia, tem o vice para assumir. Por isso tem vice presidente. É normal. Não souberam fazer isso por um conjunto de fatores que vem de longe: de divisões internas no meio militar. Na crise do Getulio, em 54, houve uma tentativa de golpe, impedindo até a candidatura JK. [Henrique] Lott liderou. A UDN só na linha do antigetulismo. Não tínhamos uma maturidade política para aceitar que a normalidade institucional prevalecesse. A minha tristeza é que eu não acho que nós tenhamos evoluído tanto. Apesar dos vários anos de retomada democrática, a partir da Constituição de 88, há varias questões que continuam pobres. Por exemplo, os partidos políticos não têm vida democrática. Sem exceção. Não têm democracia interna, não têm militância política. São os caudilhos com nomes diferentes. São eles que vão à TV e falam em nome do partido.
      Antes a dinâmica era diferente?

      Não era perfeita, mas tínhamos núcleos de debate no PTB. Eu me elegi duas vezes líder do partido contra a vontade do presidente da República e que era presidente do partido, o Jango. Havia uma luta interna democrática. Havia núcleos com divergências. Havia uma experiência de democratização partidária. Havia esse contraditório interno. Hoje a minha ficha está no PMDB, mas não vale nada para mim. Não tem democracia interna. É uma crítica que eu faço a todos os partidos. Isso é uma lição do passado que quem sabe poderia ser renovada. É só observar hoje como está a discussão da reforma política.
      E a mobilização popular da Legalidade?

      Tivemos depois essa mobilização na campanha das Diretas.


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      Fabrício Augusto Souza Gomes

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        ** Brizola e os 50 anos da Campanha da Legalidade (Folha de S.Paulo, 07.08.2011)

         
        HISTÓRIA

        Barricadas radiofônicas

        Brizola e os 50 anos da Campanha da Legalidade


        RESUMO

        A crise que se sucedeu à renúncia de Jânio Quadros, em 1961, levou o então governador gaúcho, Leonel Brizola, a liderar a Campanha da Legalidade, mobilização que pretendia garantir a posse do vice, João Goulart. Difundida pelo rádio e com forte participação popular, a campanha adiou um golpe militar até 1964.


        ELEONORA DE LUCENA


        A RENÚNCIA DE JÂNIO
        Quadros, em 25 de agosto de 1961, deixa o país perplexo. João Goulart, o vice-presidente eleito, está em viagem oficial à China. Os militares não aceitam a posse do vice e anunciam que prenderiam Goulart quando desembarcasse no Brasil. O golpe está armado.

        Em Porto Alegre, o governador Leonel Brizola (1922-2004) resolve resistir. Com metralhadora e microfone em mãos, passa a transmitir pelo rádio discursos contra os golpistas e pela legalidade da posse de Jango. O comandante do 3º Exército, do Sul, recebe ordem para bombardear o Palácio Piratini -e não a cumpre.


        Uma multidão vai para a praça da Matriz, onde fica a sede do governo estadual. Estudantes arrancam bancos de cimento e fazem barricadas. Sargentos se rebelam. Armas são distribuídas a voluntários civis. O Exército no Sul apoia a campanha. O golpe é contido -ou, melhor, adiado.


        Jango volta e toma posse em 7 de setembro, sob um recém-implantado parlamentarismo.


        REBORDOSA


        A história completa 50 anos e ainda está viva na memória de Carlos Bastos, 77, então repórter da "Última Hora". Lembra que a renúncia provocou uma "rebordosa": "Fiquei morando no palácio por 12 dias. Só ia para casa para tomar banho e trocar de roupa. Recebi um revólver".


        A 2.000 km dali, Almino Affonso, 32 anos, líder do PTB (partido de Jango) na Câmara dos Deputados, discursou logo após a renúncia -que, diz à
        Folha, "na minha opinião, de forma intuitiva, era um golpe que Jânio tinha tentado fazer através do gesto" (leia a íntegra em folha.com/ilustrissima).

        A mesma visão tem Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de livros sobre o período. Na época repórter do "Diário de Notícias" carioca, cobriu a campanha eleitoral de Jânio. "Ele manifestava inconformismo por ter de governar dentro dos marcos legais; queria poderes extraordinários", avalia, em entrevista à
        Folha (leia a íntegra em folha.com/ilustrissima).

        Jânio não obteve apoio para voltar com poderes ditatoriais. Desagradava à direita, em razão de sua política externa independente, e à esquerda, que protestava contra a sua política econômica. Autor de "Raízes do Golpe" [Marco Zero, 1988], Almino recorda que a Campanha da Legalidade "levantou o Rio Grande do Sul, com Brizola tendo um apoio fantástico, com o povo nas ruas. O país inteiro acompanhava. Meus pais moravam em Porto Velho e ouviam pelo rádio e me narravam depois".


        ONDAS CURTAS


        O governo federal tinha fechado três rádios por divulgarem os manifestos de Brizola. O governador então mandou transferir para os porões do Piratini os estúdios da rádio Guaíba, com os transmissores protegidos pela Brigada Militar (a PM gaúcha). Outras 15 rádios do país e do exterior se incorporaram à Cadeia da Legalidade. Por ondas curtas, os discursos e despachos eram traduzidos para várias línguas.


        No "porão da legalidade" do Piratini, Erika Kramer era uma das poucas mulheres. Tinha 23 anos e estudava jornalismo. Conta que foi incumbida de fazer a redação e a locução em alemão das transmissões da rádio. Filha de imigrantes de Hamburgo, ela aprendera a língua com os pais, que produziam aspargos e frutas em Pelotas. "Fiquei 12 dias fazendo noticiário, na base de cafezinho e sanduíche. Fazíamos pelo civismo", afirma.


        A situação ficou mais tensa quando um radioamador interceptou uma mensagem com a ordem de que a Força Aérea e o 3º Exército bombardeassem o Piratini. Ninhos de metralhadoras foram instalados no alto do palácio e na vizinha catedral. Carros, jipes, sacos de areia e bancos defendiam o lugar. O comandante militar da região, general José Machado Lopes, pediu um encontro com Brizola, que de metralhadora em punho, pegou o microfone no porão do palácio e fez um célebre discurso. Alguns trechos:


        "Não nos submeteremos a nenhum golpe. Que nos esmaguem. Que nos destruam. Que nos chacinem nesse palácio. Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada. O certo é que não será silenciada sem balas. Resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Podem atirar. Que decolem os jatos. Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo. Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência de nosso povo."


        O jornalista Bastos, que estava no Piratini, afirma: "Quando Brizola começou a falar, havia umas 5.000 pessoas na praça da Matriz. Cinquenta minutos depois, quando ele acabou, eram mais de 50 mil". A massa esperava a chegada do comandante do 3º Exército.


        BRIZOLA


        Leonel Brizola era filho de pequenos agricultores do interior gaúcho. Seu pai tinha morrido na guerra civil gaúcha de 1923. Pobre, foi engraxate, vendedor de jornais, operário. Chegou a Porto Alegre só com o dinheiro da passagem. Formou-se engenheiro e entrou para a política.


        Governador a partir de 1959, ampliou a rede de escolas, fez um programa de moradias populares, encampou empresas estrangeiras (telefonia e eletricidade). Joaquim Felizardo, no seu sintético "A Legalidade, Último Levante Gaúcho" [UFRGS, 1988], chama a atenção para o fato de Brizola ser, naquele momento, um tipo novo de liderança, deixando para trás os tradicionais grandes proprietários de terras e superando o legado de Getulio Vargas.


        "O governador era uma espécie de tribuno da plebe", escreve o historiador, ao explicar as razões da adesão popular à Campanha da Legalidade. Citando o historiador Décio Freitas, Felizardo ressalta que os gaúchos estavam incomodados também pelo rearranjo de poder no país: "A crescente hegemonia do capital monopolista instalado no Sudeste solapava as bases tradicionais da economia sul-riograndense e acentuava a desigualdade do desenvolvimento econômico". Alguns mais radicais previam que o Estado viraria um "outro Nordeste".


        Nesse contexto, crescia o movimento tradicionalista e a proverbial valentia gaúcha era acalentada. O lema da Revolução de 30 ("Rio Grande, de pé pelo Brasil") valia em 61. Bombachas e chimarrão eram os símbolos daqueles "indignados" de 50 anos atrás. "Brizola foi o último porta-voz dessa referência cultural. Soube apelar para os valores do inconsciente coletivo", analisa Felizardo. Anos mais tarde, Moacyr Scliar captaria as contradições do momento no romance "Mês de Cães Danados - Uma Aventura nos Tempos da Legalidade" [L&PM, 1977]. Na trama vigorosa, a tradicional família gaúcha encara a miséria e a sarjeta. Naquele 61, Erico Verissimo finalizara o seu épico "O Tempo e o Vento".


        MILITARES


        Na Matriz, os militares chegam para falar com Brizola no palácio. Há quem ache que o governador pode ser preso. O historiador Jorge Ferreira, autor de "João Goulart, uma Biografia" [Civilização Brasileira, 2011], em entrevista à
        Folha, relata: "Machado Lopes e os generais chegaram num jipe. Nas escadarias do palácio, diante deles, havia cerca de 100 mil pessoas. O silêncio era enorme. Quando eles subiram as escadas (permitindo que a população os visse), alguém começou a cantar o Hino Nacional. Machado Lopes e os generais pararam, viraram-se para o povo, botaram a mão no peito e também cantam o hino. Milhares de pessoas choraram nesse momento" (leia a íntegra em folha.com/ilustrissima).

        No palácio, Machado Lopes comunica oficialmente a Brizola que os generais do 3º Exército "decidiram, por maioria de votos, que só aceitam a solução para a crise dentro da Constituição; por conseguinte, com a posse do vice-presidente". O 3º Exército aderia à legalidade e desafiava a junta militar golpista. Lá fora, a multidão festeja.

        Aos 61 anos, Machado Lopes comandava a maior força militar brasileira: 120 mil homens no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, anotam os jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton na detalhada narrativa de "61, Que As Armas Não Falem" [Senac, 2001]. O general não era um esquerdista infiltrado: ao contrário, foi um opositor do tenentismo, da Coluna Prestes e lutara contra os comunistas em 1935.

        Moniz Bandeira aponta a existência de distintas tendências nas Forças Armadas, com maioria para os legalistas. Para ele, a Guerra Fria alterou o quadro: "Os EUA modificaram sua estratégia e passaram a incentivar a participação dos militares na política interna de seus países." O objetivo era conter o avanço do comunismo. "Na Campanha da Legalidade, pela primeira vez a cisão nas Forças Armadas se expressou publicamente".


        "1961 foi um desastre para o Exército", resumiu Golbery do Couto e Silva, ideólogo da ditadura, citado por Amir Labaki em "1961, A Crise da Renúncia e A Solução Parlamentarista" [Brasiliense, 1986].


        Nelson Werneck Sodré, no seu "História Militar do Brasil" [Expressão Popular, 2010], enfatiza o ineditismo da resistência de Brizola. "Pela primeira vez, pagava-se para ver. Os golpistas precisavam enveredar para a luta ou recuar. Ora, golpe em recuo não existe", constata. A junta tentou começar a armar o seu esquema, mas a coisa degringolou. "Começaram a surgir as resistências, as dissensões, as negativas, culminando com generalizada desobediência."


        AVIÕES

        Foi o que aconteceu na Base Aérea de Canoas, nos arredores de Porto Alegre, cujo comandante era fiel à junta golpista. Lá, os sargentos se rebelaram, esvaziaram os pneus dos jatos, desarmaram os aviões e se deram as mãos na pista de decolagem, formando uma barreira humana a impedir a saída dos voos para o bombardeio ao palácio.

        Porto Alegre tinha 635 mil habitantes; em apenas cinco dias, 45 mil deles se inscreveram para participar da resistência e entraram em filas para receber armas e treinamento. Um antigo arsenal da Brigada, comprado no início dos anos 30 para um eventual confronto com Getulio, foi distribuído. "Brizola armou a população em Porto Alegre. No interior, o trabalho foi feito pelos Centros de Tradições Gaúchas, com armas artesanais, como lanças e facões", diz o historiador Ferreira, emendando: "É interessante que, ao final da crise, todos os que receberam as armas as devolveram".


        Emílio Neme, 85, que era então subchefe da casa militar de Brizola, fala à
        Folha. "Fui à fábrica da Taurus e requisitei 300 revólveres para distribuir para os que estavam no palácio." Hoje, reconhece: "Fiz coisa errada. Não pedi os revólveres de volta. Ficaram de recordação para as pessoas".

        Havia comitês de apoio de estudantes, bancários, intelectuais, ferroviários, artistas. Tradicionais rivais, Grêmio e Internacional suspenderam o jogo de domingo e declararam apoio à campanha. Para Sereno Chaise, 83, que era líder do PTB na Assembleia Legislativa, a legalidade foi o movimento cívico que produziu a maior unidade na história do Sul.


        Em "Vozes da Legalidade" [Sulina, 2011], Juremir Machado da Silva mostra que a campanha até hino teve, composto "no improviso, no calor do combate" pelo ator Paulo César Pereio e pela escritora Lara de Lemos, com melodia que misturava a Marselhesa e o hino brasileiro. A inspiração não foi intencional, lembra ele, que na época tinha 20 anos e fazia parte do comitê de resistência democrática do grupo Teatro de Equipe. "Era muito heroísmo", disse Pereio à
        Folha.

        JANGO


        Enquanto isso, Goulart fazia sua viagem de volta da China, passando por Paris, Nova York, Lima, Buenos Aires, Montevidéu. "Jango", filme de 1984 de Silvio Tendler, começa com imagens curiosas da visita ao presidente Mao e mostra o desenrolar da crise, que desaguaria no golpe de 64.

        Em 61, no epicentro das negociações em torno do parlamentarismo, estava Almino Affonso, contrário à mudança. "Chamei de golpe branco, porque a Constituição não poderia ser emendada num clima de convulsão política. Era ilegal." Mas, no próprio PTB, surgiram os apoiadores à tese de acomodação. A saída negociada foi acertada por Tancredo Neves, futuro primeiro-ministro, conversando com Jango em Montevidéu.


        Para a capital uruguaia, com um grupo de jornalistas, foi Lucídio Castelo Branco. Tinha 23 anos e queria entrevistar Jango. "Ele me chamou por volta da meia-noite e disse que, a partir daquele momento, eu ia ser o seu secretário de imprensa e que precisava comunicar que não haveria entrevista. Quase apanho dos colegas", diz.


        Com Jango, embarcou para Porto Alegre num Caravelle da Varig e viveu momentos de pavor. "O comandante disse que o voo era de emergência, viajava na escuridão completa. Na descida, embicou de um jeito que eu morri de medo. Fiquei apalermado. Só consegui sair do avião 15 minutos depois do pouso."


        No Piratini, por imposição de Tancredo, Jango não discursa. Como faria em 1964, evita o confronto e o risco de guerra civil. Num misto de vitória e frustração, a multidão vaia um Jango silencioso.


        Brizola ainda pede que Jango não aceite o parlamentarismo e marche com o 3º Exército até Brasília. Em entrevista a Markun e Hamilton, em 2001, Brizola asseverou: "Nós venceríamos facilmente. Tropas do Sul se juntariam a outras por toda parte. A resistência seria localizada num nucleozinho. Seria uma marcha vitoriosa para uma mudança no país".


        Moniz Bandeira discorda: "A marcha sobre Brasília não seria simples passeata. Haveria luta armada. Carlos Lacerda, governador [do então Estado] da Guanabara, tinha apoio militar e estava envolvido no golpe". Almino, que agora escreve outro livro sobre o período ("João Goulart, Uma Revisão da História"), defendeu, naquele momento, a marcha, assim como Brizola. Hoje, pensa diferente. "Acho que Jango teve um gesto de grandeza. Tinha legitimidade para assumir, mas não queria sangue. Acho isso nobre."


        O jornalista Jayme Keunecke, então com 26 anos, acompanhou Goulart na volta a Brasília. À
        Folha, recorda o temor de que uma chamada "operação mosquito", de militares golpistas, derrubasse o Caravelle da Varig. Mas o voo foi tranquilo. "Jango fumava muito e tomava muito chimarrão", lembra o repórter.

        LEGADO


        Ministro da Defesa do governo Lula, Waldir Pires, 84, era deputado naqueles tempos tumultuados. Para ele, "o grande legado da legalidade foi o impedimento do golpe. Mas a lição não foi aprendida, porque depois houve 1964. O golpe foi simplesmente adiado".Pires conecta a tentativa de golpe de 61 com a de 55, uma tentativa de impedir a posse de JK. "Brizola foi em 61 o que [Henrique] Lott foi em 55", compara.


        Já Almino pensa que não se deve avaliar o episódio como apenas um veto dos militares a Jango. Para ele, Goulart no poder significava "a volta do Getulio de 1950", e "muitas lideranças militares eram contra o monopólio estatal do petróleo e queriam maior participação do capital internacional".


        "Ainda estávamos numa etapa democrática muito pobre", afirma Almino. Em contraponto, Ferreira argumenta que o legado do movimento foi mostrar que a sociedade era apegada à democracia. "A junta militar apertou o botão do golpe, mas a sociedade reagiu e não concordou. Golpes não dependem da vontade de generais; exigem apoio social", declara.


        Naqueles dias, o governador de Goiás, Mauro Borges, aderiu à campanha. Várias entidades civis pelo Brasil também apoiaram. Uma mobilização que, para Almino, reapareceu nas "Diretas-Já", em 1984. Mas ele desabafa: "Minha tristeza é que não acho que tenhamos evoluído tanto. Apesar da retomada democrática, os partidos, sem exceção, não têm democracia interna e militância política. São caudilhos com nomes diferentes".


        Na praça da Matriz, em setembro de 61, a chuva dispersou a multidão. O "porão da legalidade" foi desativado. Agora, 50 anos depois, vai virar museu.


        No RS, Brizola resiste à investida militar com metralhadora e microfone em mãos, transmitindo pelo rádio discursos contra os golpistas


        A situação ficou mais tensa quando um radioamador interceptou uma mensagem com a ordem de bombardear o Palácio Piratini

        "Pela primeira vez, pagava-se para ver. Os golpistas precisavam enveredar para a luta ou recuar", observou em livro Nelson Werneck Sodré

        "Apesar da retomada democrática, os partidos não têm democracia interna e militância política. São caudilhos com nomes diferentes" - Almino Affonso


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        Fabrício Augusto Souza Gomes

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