A moderna antropologia de uma discreta feminista
Livro reúne textos acadêmicos de Ruth Cardoso, que começou sua carreira nos anos 1950 com um estudo pioneiro sobre imigração japonesa
Fonte: O ESTADO DE SÃO PAULO 12 de novembro de 2011 |
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo
Para definir a modernidade da antropóloga e professora paulista Ruth Cardoso (1930-2008), casada com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por 55 anos, sua aluna Teresa Pires do Rio Caldeira, hoje lecionando na Universidade de Berkeley, EUA, recorre a uma frase do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984): ela, como todos os modernos, sentia compulsão por se inventar. Talvez por isso, poucos tenham conseguido acompanhar o ritmo camaleônico de alguém que, segundo a organizadora do livro Ruth Cardoso - Obra Reunida, agora lançado pela Editora Mameluco, "criou um espaço de reflexão e interrogação do presente para forçar limites, procurar alternativas". Ruth conservou-se assim: foi uma feminista de primeira hora, incentivadora de outros movimentos sociais emergentes nos anos 1970, nascidos entre descendentes de escravos, favelados e homossexuais, sem medo de provocar os conservadores, mesmo quando assumiu - contra sua vontade - a condição de primeira-dama do Brasil.
Arquivo Ruth Cardoso/Fund. IFHC
Antropóloga. Ruth Cardoso nos anos 1970
Com a chegada do marido à Presidência, ela investiu contra a herança getulista do assistencialismo (ou clientelismo), ao extinguir a LBA (Legião Brasileira de Assistência) e inventar o Comunidade Solidária, projeto conduzido com a ajuda de empresários e apoiado pelo governo para enfrentar a pobreza e a exclusão social. O fim da LBA provocou polêmica. Anteriormente, em 1994, quando FHC fazia alianças visando à Presidência, ela já havia provocado o establishment político ao imprecar contra Antonio Carlos Magalhães. O episódio é lembrado na biografia da antropóloga, Ruth Cardoso - Fragmentos de uma Vida (Editora Globo) pelo autor Ignácio de Loyola Brandão, colunista do Caderno 2: "Ruth, certo dia, afirmou publicamente não entender como o marido se aliava a um político como ACM, figura que trazia todos os vícios do autoritarismo e da prepotência da ditadura". A explicação: o poder do baiano, capaz de manter a aliança PFL/PSDB.
Ruth Cardoso, que insistia em se manter autônoma e apartidária, parou de falar mal de ACM. Em contrapartida, um dos seus primeiros atos como primeira-dama foi levar para Brasília antigas companheiras da batalha feminista para fortalecer o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, estrutura básica da Secretaria de Políticas para as Mulheres, criada em 2003. Em A Mulher e a Democracia, um dos textos selecionados por Teresa Caldeira para o livro, ela afirma que o processo de democratização da sociedade passa necessariamente pela ideia da igualdade entre os sexos.
A luta por uma relação simétrica entre homens e mulheres, defendia a antropóloga, não se dava na porta dos sindicatos nem nas sedes de partidos, formas rotineiras (e manipuladoras) de fazer política, segundo ela. A dificuldade para as mulheres penetrarem nesse mundo, escreve, eram enormes - pelo menos eram quando o texto foi produzido, em 1987 - e por isso o movimento feminista teria um caráter exemplar entre todos os outros nascidos depois do histórico Maio de 1968.
"O trabalho intelectual de Ruth não se dissociava da intervenção no debate político, no qual se engajava como antropóloga", diz Teresa Caldeira no livro que reúne parte de sua produção acadêmica, mais de meio século de trabalho intelectual que exigiu da discípula três anos de pesquisas para selecionar os textos - o mais antigo de 1959 e o mais novo, de 2004. O primeiro, é, além de tudo, um estudo pioneiro e original sobre a imigração japonesa no Brasil, tema de sua tese de doutorado (de 1972), publicada em 1995 (pela editora Primus). O volume organizado por Teresa Caldeira reúne, pela primeira vez, os artigos acadêmicos da antropóloga em forma cronológica. Como o objetivo era apresentar o pensamento crítico, autoral, de Ruth Cardoso, ele só não contempla a produção da época em que ela ocupou o posto de primeira-dama, justifica a organizadora. Foi um período em que, mais discreta do que nunca, a antropóloga evitou expor publicamente suas opiniões.
Seis textos do livro são inéditos em português. Alguns foram produzidos um ou dois anos antes do exílio forçado do casal Cardoso no Chile e na França, após o golpe militar de 1964. São poucos. A maioria dos textos foi produzida nas décadas de 1970 e 1980, quando, novamente fixados no Brasil, a professora recebia encomendas de artigos ou convites para participar de seminários como As Mulheres e as Políticas Alimentares (França, 1985). Todos esses escritos ficaram aos cuidados do sociólogo, historiador e sócio-fundador da Mameluco, Jorge Caldeira, encarregado da missão de digitalizar todo o acervo da antropóloga, trabalho que começou duas semanas após sua morte e resultou na descoberta de diversos cadernos que traziam anotações de suas pesquisas de campo. A irmã do editor organizou esses textos, separando versões preliminares das finais.
Atenção especial merecem os artigos escritos em parceria com a antropóloga e cientista política Eunice Ribeiro Durham. Ela escreve um depoimento emocionado sobre a influência que Ruth exerceu em sua formação, destacando seus múltiplos interesses culturais (cinema, filosofia, literatura, história, teatro). "Eu admirava muito e invejava um pouco essa minha colega", admite Eunice, lembrando como as duas inventavam e adaptaram novos métodos didáticos trabalhando com estudantes. A amiga Ruth, "que conhecia o marxismo bem melhor que eu", realizou - com sucesso, segundo Eunice - o casamento da sociologia com a ciência política. No livro, o mais ambicioso texto escrito pelas duas analisa o processo acelerado de urbanização (em 1977) e o desequilíbrio provocado pela migração interna no Brasil.
Um ano depois, a antropóloga ousaria ainda mais, avançando no campo sociológico para desafiar o discurso dominante ao falar da marginalização da população trabalhadora em países de industrialização tardia. Em pesquisas de campo junto a trabalhadores favelados de São Paulo, quase todos migrantes, Ruth descobriu que eles não se viam como marginais - esses, para os entrevistados, eram os "vagabundos" ou doentes, os verdadeiros excluídos da sociedade. Recorrendo a Richard Hoggart, que definiu os trabalhadores de Leeds como crentes na evolução contínua da sociedade industrial (embora nem tanto na ascensão social), a antropóloga afirma que os favelados paulistanos acreditavam ainda mais na mobilidade social que os operários ingleses.
Hoggart, acadêmico inglês cuja participação no julgamento de O Amante de Lady Chatterley foi decisiva para a liberação de obra de D.H. Lawrence, desconfiava (já em 1957) que a cultura de massas iria impor novos padrões de comportamento e fortalecer preconceitos sociais. Ruth Cardoso detecta, de fato, num ensaio sobre consanguinidade e educação em famílias de favelas, que uma favelada negra havia adotado um bebê branco, dispensando todo carinho e atenção a ele, enquanto desprezava os dois filhos biológicos. Contra o discurso politicamente correto, a antropóloga demonstra que a adoção nas classes urbanas menos favorecidas seguia, para falar o mínimo, uma lógica um tanto perversa.
"Mais que Lévi-Strauss, cujos seminários frequentou nos anos 1960 e foi uma influência importante, Hoggart e Paul Willis inspiraram muito essas análises das entrevistas com residentes em favelas", observa Teresa Caldeira. "Importava a ela qual a relação que o entrevistado tinha com essas falas pesquisadas", diz a organizadora, acenando com um segundo volume para abrigar textos que ficaram de fora no livro. Professora e orientadora dedicada, segundo ela, Ruth Cardoso chegou a visitar a aluna diversas vezes em São Miguel Paulista, bairro em que se fixou para escrever sua tese.
Graças a esse corpo a corpo com a vida nas periferias, os meios de comunicação de massa e os jovens passam a ser seus "temas estratégicos para entender as mudanças políticas e culturais" nos anos 1970. "Ela era contra o conceito de subcultura, queria mostrar como os favelados estavam a par de tudo e sempre foi uma feminista convicta, fascinada pelo seriado Malu Mulher, de Regina Duarte, justamente por forçar os limites e ter, surpreendentemente, uma imensa aceitação pública", diz Teresa Caldeira.
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