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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

** Memorialística em tom de crônica

 

Memorialística em tom de crônica

Em seu recente livro, Boris Fausto recorda o próprio passado sem perder de vista o contexto histórico maior

29 de janeiro de 2011 |

Fonte: ELIAS THOMÉ SALIBA. - O Estado de S.Paulo

Historiadores nunca foram bons biógrafos de si mesmos. Foi esta a opinião do medievalista Georges Duby, ao final dos Ensaios de Ego-História - livro que reuniu histórias de vidas de sete importantes historiadores franceses, em 1987. Opinião polêmica, não compartilhada por muitos dos seus próprios colegas que acabariam se arriscando no pantanoso terreno memorialístico.
Se o livro anterior, Negócios e Ócios, já fora uma experiência bem-sucedida, no seu mais recente Memórias de Um Historiador de Domingo, Boris Fausto vem apenas reafirmar aquele raro talento de alguns historiadores para o gênero memorialístico. Gênero para o qual é bom que se diga não há regras nem receitas - e talvez a única certeza é que tais regras sejam completamente dispensáveis. Começando pelos primeiros anos da década de 1950 e chegando até a atualidade, Fausto consegue unir a força da recordação a uma narrativa estimulante e despretensiosa. Talvez porque sua narrativa não obedeça a uma estrita sequência cronológica - cada capítulo se parece mais com uma crônica, no qual relembra tópicos importantes de sua trajetória: a rotina de estudante da Faculdade de Direito, a curta experiência na advocacia comercial, a intermitente militância trotskista, a tardia graduação em História e a publicação de seus livros - muitos deles, hoje, considerados clássicos da historiografia brasileira. Num capítulo especial, o historiador reconstrói ainda a biografia de sua mulher, a educadora Cynira Stocco Fausto, fornecendo aos leitores detalhes pouco conhecidos da rigorosa formação católica feminina na década de 1950.
Uma vantagem que um historiador leva ao recordar o próprio passado é que, talvez por força de um tique profissional, ele nunca perde de vista o cenário histórico maior. A narrativa da atração de Fausto, ainda jovem advogado, pelo trotskismo pontilha algumas características gerais, que podem ser estendidas às trajetórias de vida de muitos dos seus contemporâneos: tratava-se menos de uma opção pela militância do que uma oportunidade rara para se discutir ideias - já que isto pouco existia nas escolas ou mesmo nas universidades. Também suas experiências partidárias - como membro do nanico Partido Operário Revolucionário, que se reunia numa salinha nos desvãos do edifício Martinelli - não podem ser vistas apenas do ângulo político, pois tornaram-se parte do processo de socialização e construção de identidades daquela geração. Ainda assim, há traços bastante singulares da biografia de Fausto, e até mesmo seu engajamento no trotskismo não se traduziu apenas por opções puramente intelectuais. "Minha história de vida me impeliu para a margem da margem, para começar, pela condição de judeu, apesar da não religiosidade e dos esforços bem-sucedidos de integração.(...) e o fator decisivo do sentimento de marginalidade foi a morte prematura de minha mãe e a forma como esse desastre foi tratado no âmbito familiar" - escreve o historiador, sem aquela autocomplacência tão comum aos memorialistas. Longe da aridez dos manuais, lá também aparecem, sutilmente delineados, os contextos políticos e culturais daquelas décadas decisivas para a história brasileira.
São recordações não destituídas de certa crueza - esta última atenuada com finas doses de autoironia, que pelo menos deixam o historiador bem longe do pecado da idealização do passado. O jovem historiador frustrou-se por não aprender a dançar e nem passar pelas famosas aulas de Madame Poças Leitão - mas compensou isto com duas paixões que o acompanharam desde a juventude: o futebol e o cinema. Julga, contudo, que a paixão pelo futebol - ainda mais acentuada por ser torcedor do Corinthians - abriu uma brecha de salutar irracionalidade na vida de um intelectual no qual o racionalismo sempre figurou em doses excessivas. Pertencente àquela geração imediatamente posterior aos grandes clássicos da ciência social brasileira, Boris Fausto começou a publicar suas principais obras num momento de questionamento das grandes interpretações do Brasil, no qual as "visões gerais" começavam a ceder seu espaço àquelas investigações mais pontuais e, ao mesmo tempo, mais especializadas e mais inovadoras.
De qualquer forma, escrevendo memórias, Fausto mostra-se mais a vontade e é mais bem-humorado do que quando escreve como historiador. Esboça rápidos e pitorescos retratos dos seus contemporâneos dos tempos da faculdade, dos colegas advogados, dos rituais forenses ou mesmo, de alguns mestres da Faculdade de Direito. Como Canuto Mendes de Almeida, de Direito Penal - que havia ensaiado ser cineasta na juventude - e que trocava citações eruditas por versos de Herivelto Martins, como: "Primeiro é preciso julgar/ pra depois condenar". Ou o professor Waldemar Ferreira, com sua indefectível gravata-borboleta, indicando aos alunos apostilas dos seus próprios textos escritos, permeada de frases empoladas, como "o comércio que por mar se faz, de marítimo o nome se lhe dá". Em cima desta última referência, aventa-se a hipótese - anedótica, é claro - de Jânio Quadros ter sido um dos alunos mais aplicados do referido mestre. Anedota que lembra uma daquelas espirituosas definições de "dívida flutuante" que o Barão de Itararé dava, na mesma época, nas suas impagáveis lições de economia política: "navio hipotecado". Mesmo ao narrar amargos episódios de sua prisão, por poucos dias, em 1964 e em 1971, e seus sombrios contatos com órgãos e personagens da repressão - incluindo a violência de uma coronhada no estômago -, Fausto consegue manter a bonomia e tom discreto do cronista. Como no seu depoimento num IPM em 1969, quando ao ser inquirido sobre o conteúdo das suas aulas de história discorreu longamente sobre o Tenentismo e a Revolução de 1930, dando uma verdadeira aula ao major que o interrogava - este último demonstrando inusitado interesse pela história do País.
Longe de um ensaio de ego-história, Memórias de Um Historiador de Domingo completa o volume anterior - e chega para ocupar um lugar promissor no memorialismo brasileiro, já que exercita, como uma chave mestra para destravar o passado, aquela virtude de todo grande memorialista, que é envolver a si mesmo no seu próprio universo da ironia.

ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DE TEORIA DA HISTÓRIA NA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE RAÍZES DO RISO (COMPANHIA DAS LETRAS)


 
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