A história da bebida durante a colonização do Brasil
Fonte: FAPERJ - Danielle Kiffer
Rituais indígenas regados a bebidas: tema pouco estudado em pesquisas |
No período pré-colonial, a bebida era mais um entre tantos aspectos que faziam parte do abismo cultural que separava os índios dos europeus que pisavam em terras brasileiras. "As festas nativas, repletas de embriaguez, eram um espaço fundamental para a expressão das visões de mundo indígenas e para a realização de eventos importantes, como celebração de casamentos ou vitórias de combates. Tais práticas contrastavam completamente da forma como os europeus acreditavam ser o correto relacionamento com o álcool e com autocontrole. Eram dois mundos etílicos completamente diferentes, com lógicas mentais e práticas sociais desenvolvidas ao longo de milênios", conta o pesquisador João Azevedo Fernandes, autor de Selvagens Bebedeiras: álcool, embriaguez e contatos culturais no Brasil Colonial (séculos XVI-XVII). O livro faz parte de uma série que vem sendo lançada pelo grupo de historiadores do grupo Companhia das Índias – Núcleo de História Ibérica e Colonial na Época Moderna, como resultado de pesquisas coordenadas pelo historiador Ronaldo Vainfas e desenvolvidas com o apoio do edital Pronex, da FAPERJ. "O livro mostra o papel das bebidas nas sociedades indígenas, e busca elucidar como essas práticas influenciaram os primeiros séculos da colonização no Brasil", conta Fernandes.
Mas por que pesquisar sobre um assunto tão curioso? A resposta de João Fernandes é simples: "Tem muito a ver com a minha dissertação de mestrado sobre mulheres indígenas e seu papel durante o processo de colonização no Brasil. Percebi que a fabricação e o consumo das bebidas era sumamente importante na sociedade tupinambá, e traduzia uma série de aspectos culturais das sociedades indígenas. E também vi que é esse um assunto muito pouco estudado no país."
No livro, o pesquisador compara o significado da bebida para as populações européias e para os indígenas brasileiros, mostrando a distância entre ambos. Em 1751, por exemplo, o inglês William Hogarth fazia clara distinção entre o "bom álcool", representado pela cerveja, consumida pelos ingleses há séculos e considerada como tornando as pessoas saudáveis, amistosas, felizes e produtivas, e a "catástrofe provocada pela popularidade das bebidas destiladas, no caso o gim, de péssima qualidade, entre as massas urbanas".
No Brasil colonial, a cerveja era feita, basicamente, da fermentação da mandioca e do milho, principalmente entre os tupinambá. O modo de fermentação, entretanto, era um tanto peculiar: cabia às mulheres da tribo mascar as raízes, que eram cuspidas em uma vasilha. A massa mascada era mais tarde colocada para ferver com água e a mistura era guardada em outras vasilhas, enterradas para a fermentação.
Segundo João Fernandes, a relação das mulheres com a fermentação e a produção da bebida não era apenas um privilégio, mas também uma relação com sua sexualidade e seu papel na gestação. Conforme explica, entre esses indígenas, o cauim podia ser comparado ao sêmem. "Para os tupi araweté, o sêmen dos homens 'fermenta' na barriga das mulheres, produzindo as crianças. Isso mostra a grande importância que a bebida fermentada tinha em sua estrutura sociológica. A fermentação era vista como uma operação mágica, capaz de transformar alimentos em substâncias que alteravam a consciência humana."
O fato de serem as mulheres as responsáveis por essa tarefa especial lhes conferia uma aura de respeito: afinal, tratava-se de uma função importante, pois as bebidas eram parte essencial dos rituais, desde casamentos a funerais. "O cauim era, por exemplo, fundamental nas cerimônias matrimoniais, que, para os homens era considerado como uma modificação de status, que os transformava em adultos completos." Segundo o pesquisador, a bebida alcoólica também tinha um papel privilegiado, sendo oferecida até ao inimigo aprisionado, que mais tarde seria morto e devorado pela tribo, numa prática de canibalismo ritual.
Mas festas regadas a bebida alcoólica dos nativos acabaram sendo um obstáculo ao domínio do colonizador. "Durante e após as cauinagens, os europeus percebiam que seus mecanismos de controle iam sendo desafiados pelos índios que, quando embriagados, pareciam, aos olhos dos europeus, possuídos por alguma espécie de força demoníaca, originada das jarras e cuias onde as bebidas espumavam", conta o pesquisador. Como forma de dominação, os colonos europeus dirigiram primeiramente seus esforços em eliminar essas festas. "E também se utilizaram das próprias festas, valendo-se da bebedeira dos índios, para instigá-los uns contra os outros. Infiltrados entre os índios e bebendo com eles, os portugueses os incitavam a guerrear contra seus inimigos tradicionais."
Junto com as ações dos missionários, que lutavam contras as cauinagens, pretendendo tornar o índio civilizado, a introdução de outras bebidas, como a cachaça, por exemplo, foi, pouco a pouco, enfraquecendo os antigos rituais indígenas. "O fim dessa história todos já conhecemos bem: os índios tiveram suas tradições, e com elas suas bebidas, atacadas e praticamente deixadas de lado. Com tudo isso, eles foram finalmente lançados ao mundo moderno, não como homens civilizados, mas como ícones de uma diferença extrema, distantes de sua realidade e símbolo da vida a que foram submetidos", finaliza o pesquisador.
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