FONTE: FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - Aline Salgado
Em destaque, índia Potira no programa do Chacrinha. Ao fundo aparece o apresentador (Fotos: Divulgação) |
"Sabe, o tutu é pouco. Uma mixaria mesmo, mas uma coisa é inegável:
promove. O Chacrinha é um trampolim". O depoimento direto e sincero é da
ex-chacrete Índia Potira, Glória Maria, concedido ao Jornal Ideia Nova
nos anos de 1970 e um dos muitos documentos pesquisados na Biblioteca
Nacional pelo antropólogo formado pelo Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Raphael Bispo. O material compõe a
cuidadosa etnografia sobre a primeira geração de assistentes de palco do
comunicador Abelardo Barbosa, o Chacrinha.
Com o nome de Rainhas do Rebolado: Carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo (Editora
Mauad X, 388p.), a tese de doutorado defendida em 2013 pelo
hoje professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ganhou o formato de livro
este ano, com o apoio do Auxílio à Editoração (APQ 3), da FAPERJ.
Através de uma extensa investigação em jornais e revistas da época,
documentários e entrevistas pessoais realizadas com 12 das go-go-girls da
primeira fase do programa televisivo, que durou três décadas, Raphael
mostra as várias facetas da vida antes, durante e após a fama das
celebridades-produto da indústria cultural nacional. Histórias
conhecidas e desconhecidas do grande público, que trazem um olhar
detalhado e, por vezes, carinhoso sobre o mundo glamouroso vivido pelas chacretes.
O estudo, desenvolvido entre os anos de 2010 a 2013, seguiu uma ótica
interdisciplinar, conjugando conhecimentos socioantropológicos,
históricos, de comunicação social e das pesquisas sobre gênero e
sexualidade. É com esse olhar que Raphael analisou a trajetória de vida
de um conjunto de dançarinas sensuais, que sem formação técnica e
oriundas de camadas pobres do subúrbio carioca, ganhou destaque na
televisão brasileira no final dos anos 60 até durante toda a década de
1970. Ao pesquisador, cabia o interesse em saber como essas mulheres,
hoje na casa dos 65 anos de idade, vivem, agem, pensam e falam sobre
suas próprias existências.
Algumas delas, como Edilma Campos (a
Rainha do Palmeiras), Índia Potira (Glória Maria), Vera Lúcia (a Vera
Caxias) e Elisabeth Alves (a Beth Boné), concederam extensas entrevistas
ao pesquisador, revelando a ele pormenores de suas vidas e intimidade.
“Entrevistei 12 ex-chacretes, mas com apenas quatro tive uma aproximação
maior, o que chamamos de ‘observação participante’. São delas os
depoimentos mais influentes do livro, extraídos por meio de encontros
frequentes, seja nas suas casas ou no cotidiano de suas rotinas. Aos
poucos, fui conquistando um espaço nas vidas delas, deixando de ser
visto como um 'estranho'. A intimidade me permitiu conhecer suas
histórias e perspectivas de vida”, conta.
Entre as principais
temáticas reveladas pelo livro, lançado em maio deste ano, estão as
experiências das chacretes com o mundo artístico; suas aproximações e
limitações morais para com o mercado erótico; as relações
afetivo-sexuais que estabeleceram ao longo de suas trajetórias; suas
relações com a família; seus processos de conversão religiosa; os
dilemas em torno de uma vida sexual ativa; a maneira como experimentam o
envelhecimento e, até mesmo, a solidão. Raphael esclarece que,
diferente do que se imagina, o sentimento de solidão revelado pelas
assistentes de palco de Chacrinha não está exclusivamente associado ao
ostracismo em que se encontram suas carreiras artísticas e, sim, a
dilemas de suas vidas íntimas.
“Uma marca tão ambígua, quanto
humana”, resume o pesquisador para logo acrescentar: “Ao mesmo tempo que
se mostravam fatais, sexualmente potentes e ‘empoderadas’ na figura de
chacretes, na intimidade elas se mostram frágeis, submissas a
constrangimentos e controles familiares, que em alguns casos se
revelaram em traição conjugal e violência doméstica”, diz o pesquisador.
O arrependimento também é um sentimento comum a elas. Seja
das atitudes tomadas quando novas, como o envolvimento com as drogas e o
relacionamento amoroso com um bandido – caso de Índia Potira –, seja da
própria opção pela vida artística. “Não foram poucas as que mantêm a
posição firme de esquecerem o passado de chacrete. Isso ficou claro para
mim nas tentativas, sem sucesso, de contato com algumas. Essas preferem
não trazer à tona constrangimentos contemporâneos na relação com o
marido, filhos e família”, afirma Raphael.
Raphael Bispo ao lado das entrevistadas Índia Potira (à esq.) e Vera Caxias no lançamento do livro, em maio deste ano |
Por outro lado, a melhor idade deu a algumas das dançarinas de
Chacrinha uma espécie de ‘empoderamento’, conforme define o pesquisador.
Um estágio de vida em que lembrar o passado de celebridade se
transformou em um exercício agradável e gratificante. “É na velhice que
algumas delas se encontram donas de si e mais ativas. Menos
comprometidas com maridos e filhos. É um momento de reconsideração de
esferas da vida, de falar sobre um passado de importância, de
reencontrar colegas de palco, dançarinas e produtores. Algumas me
disseram, inclusive, que nunca tinham sido tão chacretes quanto agora,
aos 60”, diverte-se Raphael.
Entre depoimentos e análise do acervo da época, o pesquisador
estabelece uma reflexão crítica acerca das transformações que os
programas de auditório promoveram na TV e na sociedade brasileira nos
anos 70. Entre o passado e o presente, um conjunto de similaridades
aparece, o que mostra ao leitor como a indústria cultural se estrutura,
criando padrões de comportamento, beleza e orientando visões de mundo.
“A TV trabalha com a mecânica da ideia da persona, logo, o indivíduo é
marcado com uma série de características que, no caso dessas mulheres,
são conhecidas por serem dançarinas, sensuais e pouco inteligentes.
Assim, o fato de serem apenas vistas como 'gostosas', impediriam que
fossem atrizes”, diz Raphael, que frisa: “Ainda hoje as dançarinas de
auditório encontram dificuldades para transpor a barreira que separa os
palcos de uma vida de maior reconhecimento nas telenovelas”, avalia.
“São poucas as que conseguem ir além. Mas isso não acontece por
incompetência e, sim, porque a indústria cultural as marca a certos
tipos de ofício. Até mesmo aquelas que conseguem sair da posição de
assistentes de palco ou dançarinas para o posto de atrizes, acabam
restritas a papeis menores, como os estereótipos da loira-burra ou da
gostosa, mulher fatal”, acrescenta.
O desejo de serem mais do que dançarinas da Discoteca do Chacrinha,
alcançando uma posição de destaque como intérpretes, ainda é recorrente
nas memórias e desejos íntimos das chacretes. Mas em vez de sentirem
tristeza pelo sonho não concretizado, o que as ex-assistentes de palco
mais têm em comum é a memória viva e feliz de uma época em que estar na
TV representava o acesso a um mundo mágico, não só de fama como também
de oportunidades e melhoria de condição socioeconômica, para elas e suas
famílias. Tal como Índia Potira ressaltou em sua entrevista a um jornal
na década de 70, para muitas, o Chacrinha foi um trampolim.
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