| Livro analisa        relação entre história e música no Brasil e destaca como as múltiplas        influências contribuíram para a construção dos gêneros e gostos musicais        
 
 Na década de 1920,        jornais e revistas de São Paulo começaram a registrar um espetáculo        curioso: pessoas se aglomeravam diariamente em frente às lojas de discos        para ouvir os lançamentos da época, que incluíam tango, maxixe, marchinhas        ou sambas, em gravações de artistas como Francisco Alves, Gastão Formenti,        Stefana de Macedo ou Vicente Celestino. 
 Os        mais abastados também se reuniam em cafés e outros lugares públicos,        principalmente no centro comercial da cidade. A prática da escuta coletiva        permaneceu mesmo após a proibição da Câmara Municipal, com o argumento de        que o alto volume das vitrolas perturbava o sossego de        comerciantes. 
 O        episódio está registrado em um dos capítulos do livro História e Música no        Brasil, organizado por José Geraldo Vinci de Moraes e Elias Thomé Saliba,        que acaba de ser lançado. A obra reúne nove capítulos de pesquisadores        ligados ao grupo Entre a Memória e a História da Música, do Departamento        de História da Universidade de São Paulo (USP), criado em 2004. 
 O        livro, que é acompanhado de CD, analisa fragmentos da história musical do        país desde a chamada música colonial, passando pela chegada da família        real em 1808, que imprimiu nova dinâmica cultural ao país, até o        surgimento da indústria fonográfica nas três primeiras décadas do século        20. Destaca também artistas que marcaram a história da música popular        brasileira, como Nazareth e Pixinguinha. A obra recebeu apoio da Fundação        de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) na modalidade Auxílio        à Pesquisa - Publicações. 
 De        acordo com Vinci, professor do Departamento de História e do Programa de        Pós-Graduação em História Social da USP, apesar de estar organizada de        forma cronológica, a publicação não busca linearidade ou "sentido para o        tempo histórico". 
 "O        livro procura mostrar que a história da música no Brasil faz parte de uma        construção múltipla. Não é apenas uma trajetória exclusiva e obsessiva da        música nacional nem uma herança dada e muito menos exclusivamente        afro-americana com relação às tradições populares. De outro lado, a obra        evita fazer uma historiografia da música no Brasil baseada na dinâmica        linear dos gêneros musicais ou nos autores", disse à Agência        Fapesp. 
 Uma        das dificuldades do estudo realizado pelo grupo - que se centra sobretudo        na música popular urbana - tem a ver também com as fontes de pesquisa. Os        registros mais organizados são encontrados na imprensa ou são frutos de        programas radiofônicos. É o caso de Almirante, cantor e radialista carioca        que reuniu nas décadas de 1940 e 1950 um acervo fonográfico e        bibliográfico que se tornou a base inicial do Museu da Imagem e do Som do        Rio de Janeiro, fundado por Carlos Lacerda (1914-1977), jornalista e        político brasileiro, ex-governador e membro da União Democrática Nacional        (UDN). 
 "A        pesquisa pretende discutir como se constrói uma narrativa historiográfica.        A música também é o que as pessoas dizem sobre ela e como elas        compreenderão depois o que foi dito, como a música popular, por exemplo.        Como se chega a essa música, que não foi registrada em partitura nem em        disco? Somente por meio do que foi dito", disse Moraes. 
 Ele        escreveu o capítulo Entre a memória e a história da música popular,        resultado do projeto com mesmo título e que recebeu apoio da Fapesp por        meio da modalidade Auxílio à Pesquisa - Regular. A pesquisa de Moraes - e        também do grupo que é coordenado por ele - resultou na construção do site        Memória da Música. 
 O        projeto também teve apoio da Fapesp na forma de Bolsas de Iniciação        Científica para coleta de dados e já abriga quase 400 registros de        trabalhos publicados por historiadores e musicólogos, acompanhados também        de arquivos sonoros. 
 "A        ideia foi criar um banco de dados para começar a refletir sobre os modos        como os historiadores interpretam a música. A partir deste ano,        pretendemos iniciar as análises qualitativas dos estudos arquivados no        site", disse. 
 A        relação entre história e música ainda é um campo em aberto, segundo o        pesquisador. "Existem algumas linhas de análises predominantes que,        infelizmente, se tornaram também uma espécie de camisa de força e        limitação, que se concentram no estudo da malandragem e da música no        Estado Novo (1937-1945), na Bossa Nova e na década 1960 com os festivais.        A maior parte das pesquisas ainda prefere abordar essas três linhas",        afirmou. 
 Construção do gosto        brasileiro 
 O        principal objetivo do livro, de acordo com o professor da USP, foi        entender a história cultural da música. No capítulo "Música na América        Portuguesa", Paulo Castagna, do Instituto de Artes da Universidade        Estadual Paulista (Unesp), analisa a chamada música colonial, que marcou        os três primeiros séculos após o Descobrimento, mas que é contestada pelo        autor, que prefere utilizar o termo "música na América        portuguesa". 
 "O        texto de Castagna identifica as diferentes experiências e práticas        musicais que ocorreram no país, sem criar fortes hierarquias entre a        música erudita e popular. Ele analisa tanto a música religiosa e profana        trazida pelos colonizadores europeus como também aborda as práticas dos        indígenas e negros", disse Moraes. 
 Um        marco para a história da música brasileira se deu com a vinda da corte de        D. João VI, em 1808, que é analisada no capítulo "Aspectos da Música no        Brasil na primeira metade do século XIX". É nessa fase que se inicia um        processo de "construção do gosto" musical específico no Brasil. 
 A        chegada da Corte imprimiu nova dinâmica sociocultural ao Rio de Janeiro,        com a entrada em cena de compositores, copistas e intérpretes como, por        exemplo, os castrati, cantores representantes da escola italiana de canto        setecentista cuja extensão vocal corresponde à das vozes        femininas. 
 De        acordo com Vinci, o momento seguinte - segunda metade do século 19 -        inicia um interessante processo de hibridização e de misturas múltiplas.        "É um período em que o Rio de Janeiro já tinha consolidado intensa vida        musical que se manifestava tanto nos teatros fechados e ambientes        cortesãos como nos espaços públicos e populares. Ou seja, é o momento em        que se começam a decantar os gêneros musicais populares como choro, xote e        samba urbano. Muitos deles vieram de influências da música europeia",        disse. 
 De        autores como Pixinguinha - que sintetiza essa trajetória de hibridização        cultural - ao samba-exaltação no Estado Novo (1937-1945), a obra aborda        também a pouco conhecida produção fonográfica paulista na década de 1930        no capítulo "Vitrola paulistana pelos olhos e ouvidos de um        basbaque-andarilho", escrito por Camila Koshiba Gonçalves, doutoranda em        história social pela USP. 
 "O        artigo de Camila trata da presença do disco no meio da população, da        função pública que cria para a difusão da música já que o público não        tinha dinheiro nem para comprar o fonógrafo nem as bolachas. Toda essa        prática pública foi importante para criar um gosto musical",        disse. 
 A        década de 1950 é destacada no capítulo "Na trilha das grandes orquestras.        O ABC da cidade moderna. Aviões, Bailes e Cinema", de Francisco Rocha,        pesquisador ligado ao grupo. O texto procura compreender as relações entre        os signos da cidade moderna (avião, bailes e cinema) com a música        popular. 
 Em        cada capítulo do livro, o leitor poderá acompanhar os textos com        referências das músicas contidas no CD. "A ideia original era que para        cada capítulo tivéssemos dois registros sonoros do que é apresentado e        discutido, mas, infelizmente, esbarramos na questão de direitos autorais",        disse. 
 Entre        as músicas, há algumas preciosidades sonoras como a gravação de "Batuque",        de Henrique Alves de Mesquita, realizada em 1910, do programa do        radialista Almirante de 1938 "Quem dá mais" (ou "Leilão do Brasil"),        gravada por Noel Rosa em 1932. 
 (Alex        Sander Alcântara, Agência Fapesp,  9/6) |