É claro que para a estabilidade do cativeiro colaboraram a violência e a coerção. Entretanto, a escravidão não era apenas uma relação de trabalho, mas também e principalmente uma relação de poder. Isso significa que sua reprodução se sustentava em grande medida na esfera política. Daí parecer-me tão importante aprofundar o estudo de instituições como a família escrava (um fator de ordem antropológica) e a incessante busca por parte dos escravos em obter algum controle sobre seu tempo de trabalho. Sobretudo em países como o Brasil, estratégias que levavam à formação de famílias e à adoção do trabalho por tarefas foram fundamentais para a acumulação de pecúlio e a obtenção da alforria. Aliás, observe-se que não temos ainda uma noção mais clara do peso demográfico das manumissões em nossa história, razão pela qual não sabemos se a população escravizada e liberta conhecia ou não índices positivos de reprodução natural, como ocorria em algumas áreas do sul dos Estados Unidos e em Barbados. Parece que isto também acontecia em Minas Gerais e no Espírito Santo. De todo modo, quanto mais descobrirmos regiões onde a população escrava e liberta obtinha saldos positivos de reprodução natural, mais nos afastaremos da demografia plantacionista devoradora de homens inventada por Joaquim Nabuco.
CAFÉ HISTÓRIA: A mobilidade social parece ser um dos temas mais interessantes e desafiadores para os historiadores que se debruçam sobre ao tema da escravidão no Brasil. A miscigenação foi a principal estratégia de mobilidade ou podemos citar outras?
MANOLO FLORENTINO: Eu diria que a miscigenação racial, um dos traços característicos do Brasil escravista, somente pode ser decifrada por meio da mobilidade social. Sabemos terem sido altas as taxas anuais de alforrias, sobretudo nas cidades, com amplo predomínio de manumissões de mulheres escravizadas. Semelhante perfil pode ter várias razões, mas para mim uma das principais era a clareza por parte dos escravos de que os filhos herdavam o estatuto jurídico das mães. Ora, uma vez na civitas, com quem se encontrava essa imensa quantidade de mulheres que ascendiam socialmente por meio das alforrias? Com seus maridos escravizados, que ajudavam a libertar, com alforriados com os quais se casavam, e com homens brancos pobres provenientes de norte de Portugal e das ilhas atlânticas, cujo número superava o de mulheres portuguesas em uma proporção que não raro alcançava 9 por 1. O que nossos historiadores demógrafos têm demonstrado é que se tratava de homens desvalidos cuja ilusão de enriquecer ("fazer o Brasil") e regressar a Portugal se esvaía em poucos anos. Acabavam, pois, por se estabelecer definitivamente na colônia e exercitavam um critério de escolha matrimonial que dista um pouco do que Gilberto Freyre chamava de "plasticidade" sexual do homem lusitano: primeiro buscavam casar com as poucas portuguesas existentes, depois com as mulheres brancas nascidas na colônia; esgotados estes mercados matrimoniais, buscavam as mestiças e negras, inclusive as mulheres forras. Logo, na base de nossa miscigenação estaria a pobreza pura e simples, que promovia o encontro entre as cativas que alcançavam a civitas e os homens pobres de origem lusitana. A miséria partejou o nosso famoso "pardo".
CAFÉ HISTÓRIA: O livro "O Arcaísmo como Projeto", escrito pelo senhor e pelo professor João Fragoso (UFRJ), tornou-se uma obra de referência na historiografia brasileira. Uma de suas maiores contribuições foi compreender a economia colonial brasileira a partir de sua própria elite, a partir de sua lógica e de suas dinâmicas. Como a relação escravo-senhor se inscreve nesta perspectiva historiográfica?
MANOLO FLORENTINO: "O Arcaísmo como Projeto" ainda hoje me surpreende, especialmente por sua vitalidade teórica. Um dos problemas que na época de seu lançamento eu e Fragoso tentávamos compreender era a imensa capacidade de reprodução da economia colonial, sobretudo em fases B (de retração) do mercado internacional. A escravidão aparecia então como uma das variáveis centrais, na medida em que, por reproduzir-se por meio do tráfico atlântico, permitia acesso a trabalho barato. O cerne da questão radica na separação promovida pela produção social do escravo na África entre o valor do cativo enquanto ser de cultura e seu preço de mercado, baixo pois em geral tratava-se de um prisioneiro de guerra. O baixo preço de mercado do escravo se transmitia em cadeia através do Atlântico e chegava às fazendas e cidades da América portuguesa. Combinado ao ínfimo valor social da terra e dos alimentos, o reduzido custo social do escravo representava uma variável fundamental para o contínuo crescimento da economia colonial, independentemente das fases de retração do mercado internacional.
CAFÉ HISTÓRIA: Como foi a repercussão do lançamento deste livro no âmbito acadêmico, sobretudo por parte dos historiadores que tiveram suas teses contrariadas?
MANOLO FLORENTINO: Visávamos contrapor um modelo consistente à teoria da dependência, dominante na historiografia brasileira desde os escritos de Caio Prado Júnior. A julgar pela recepção do público, não nos saímos muito mal, e "O Arcaísmo como Projeto" é até hoje estudado em nossas graduações e pós-graduações em história. Sei que gerou algumas reações raivosas no plano estritamente paroquial, mas em geral foi muito bem recebido entre os especialistas em história econômica.
CAFÉ HISTÓRIA: "O Arcaísmo como Projeto" é um trabalho de fôlego produzido em dupla. O trabalho de equipe, entretanto, não tem sido visto com tanta frequência entre nós historiadores. Vemos muitos livros organizados por dois ou mais pesquisadores, mas não são exatamente a mesma coisa. Na sua opinião, escrever com outras pessoas é mais difícil? Como se deu essa dinâmica com o professor João Fragoso?
MANOLO FLORENTINO: Duas cabeças pensam melhor que uma, desde que haja sintonia. De minha parte, sempre gostei de trabalhar em equipe, pois as discussões são bem mais ricas. Reconheço entretanto não ser esta uma tradição intelectual brasileira, embora seja algo bem comum em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, por exemplo.
CAFÉ HISTÓRIA: O senhor tem observado alguma tendência em trabalhos no campo da escravidão em trabalhos de pós-graduação? Talvez novos objetos ou abordagens?
MANOLO FLORENTINO: Se considerarmos, como já disse, que o caminho mais rico para se compreender a escravidão brasileira é encará-la como uma ordem cultural caracterizada por um enorme grau de estabilidade, é óbvio que a principal tarefa dos especialistas é romper com a polarização entre o cativeiro e a liberdade. Entre ambos os polos havia uma imensa gama de situações e combinações sociais possíveis. Por exemplo, estudando o caso do Paraná, a professora Cacilda Machado demonstrou que membros de uma linhagem de escravos podiam abandonar o cativeiro e duas ou três gerações depois seus descendentes regressavam à escravidão pela via do casamento com escravas. Eis uma perspectiva dinâmica de pesquisa, cujos resultados mostram claramente que a pobreza unia e direcionava inúmeros destinos pessoais. Outra linha de trabalho interessante tem sido desenvolvida por João José Reis, na Bahia, que busca acompanhar trajetórias de indivíduos alguma vez submetidos ao cativeiro. Seu livro sobre o liberto Domingos Sodré é um exemplo dos mais ricos de como a mobilidade social ascendente ocorria – o africano Domingos Sodré chegou ao Brasil escravo, conseguiu a alforria e morreu proprietário e cristão.
CAFÉ HISTÓRIA: Professor, Nos últimos anos, temos acompanhado um enorme debate público envolvendo as chamadas "ações afirmativas" no Brasil. Como o senhor enxerga esse tipo de política? Trata-se de um modelo importado? Alguns historiadores alertam que esse discurso gera um tipo de instrumentalização da história, sobretudo do tema da escravidão. O senhor concorda com essa crítica?
MANOLO FLORENTINO: Sem dúvida trata-se de um modelo de política pública importado mecanicamente, aspecto flagrante quando se compara a história das relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil, onde os níveis de mobilidade social ascendente eram infinitamente maiores. Um exemplo de instrumentalização da história brasileira por parte dos adeptos das chamadas "ações afirmativas" é a própria noção de terras remanescentes de quilombos, cuja identificação está longe de ser fácil. Outro é o fato de que parcela expressiva de nossos pardos tem sido alocada ao grupo dos "negros", quando na verdade derivam da mestiçagem entre brancos e indígenas – um tremendo etnocídio historiográfico, por certo.
CAFÉ HISTÓRIA: Em entrevista recente, o professor José Murilo de Carvalho (UFRJ) sublinhou que os principais trabalhos historiográficos sobre o Brasil continuam sendo feito a partir de um ponto de vista típico do "Eixo Rio-São Paulo". E isso pode ser um problema. Podemos dizer que isso também ocorre nos trabalhos sobre escravidão? Se sim, por que isso acontece?
MANOLO FLORENTINO: Pode ser que isto ocorra em outros campos da historiografia, mas no que se refere à escravidão creio que a hegemonia do eixo Rio-São Paulo deva ser relativizada. Com a crescente disseminação dos cursos de pós-graduação, temos visto aparecerem excelentes trabalhos no sul do país, com destaque para o Rio Grande do Sul; no sudeste, os estudiosos da escravidão mineira e do Espírito Santo têm produzido teses e dissertações bem originais; o nordeste, em especial Bahia e Pernambuco, sempre foi um celeiro de boas pesquisas sobre cativeiro. A novidade dos anos recentes tem sido o Norte e o Centro Oeste, onde também aparecem trabalhos originais. Mas eu gostaria de ressaltar uma importante distinção teórica, estabelecida desde fins da década de 1960 pelo historiador Moses Finley, que ainda pode ser útil para quem estuda escravidão fora do eixo Rio-São Paulo e nordeste. De acordo a Finley, uma sociedade escravista é aquela em que a reprodução sociológica do lugar social da elite se dá mediante a renda acumulada com o trabalho escravo. Nos casos em que há escravos na população, mas a reprodução do lugar social da elite se dá por outros meios, teríamos apenas uma sociedade possuidora de escravos. Ou seja: escravista é toda sociedade em que a utilização do trabalho escravo serve para estabelecer s diferenciação entre os homens livres. Trata-se de uma perspectiva interessante, pois a natureza escravocrata de uma sociedade deixa de ser resultado da quantidade de cativos existentes ou, mesmo, da importância do setor da economia que eles ocupam, e passa a derivar de um movimento sociológico. Desconfio que entre os séculos XVI e XIX vastas áreas da América portuguesa configuravam regionalmente apenas sociedades possuidoras de escravos.
CAFÉ HISTÓRIA: Professor, muito obrigado por conversar com o Café História. Para finalizar nosso papo, uma curiosidade: o senhor está se dedicando a quais trabalhos atualmente?
MANOLO FLORENTINO: Tenho batalhado para traçar algumas características da comunidade de islamitas negros que se formou no Rio de Janeiro depois do levante Malê de 1835 na Bahia. É uma reconstituição difícil porque eles tendiam a manter certo sigilo sobre a sua identidade religiosa e, em 1904, de acordo a João do Rio, praticamente haviam desaparecido. Tomara que eu tenha sorte.