22 de abril de 2015
Fruto de anos de pesquisa, obra reuniu depoimentos de 92 pessoas –
imigrantes de 16 países diferentes ou nascidas no Brasil – e construiu um
retrato da presença contemporânea dos judeus no país (judeus fugindo
com Torás envoltas em mantos / reprodução de imagem de gravura
cedida por Elka Frost, publicada no livro O Brasil como Destino)
FONTE:
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP A presença judaica no
Brasil é tão antiga quanto a colonização europeia do
território brasileiro. Dois judeus teriam participado da
expedição de Pedro Álvares Cabral: João Faras, médico,
astrônomo e astrólogo, que deu nome à constelação do Cruzeiro
do Sul (já conhecida, mas ainda sem denominação), e Gaspar da
Gama, apelidado “Gaspar de las Indias”, navegador, aventureiro
e poliglota, que, antes de vir à América, fora piloto de Vasco
da Gama.
Nos primeiros tempos do
domínio português, o território foi arrendado por um consórcio
de cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo),
liderado por Fernando de Noronha, que se dedicou à exploração
do pau-brasil. Posteriormente, premidas pelas perseguições da
Inquisição ou pelas difíceis condições de vida no Velho Mundo,
sucessivas gerações de judeus imigraram para o Brasil. (*).
Um expressivo recorte
dessa longa saga compõe o livro O Brasil como destino: raízes
da imigração judaica contemporânea para São Paulo, da
socióloga Eva Alterman Blay, professora titular sênior da
Universidade de São Paulo. A obra foi publicada com apoio
da FAPESP.
Autora e organizadora de
vários livros, Blay colocou neste um pouco de sua história
pessoal, como filha de imigrantes judeus (o pai nascido na
Polônia, a mãe nascida na antiga Bessarábia, hoje República
Moldova). “Todos nós, imigrantes e filhos de imigrantes, temos
uma memória que se estende além de nossas próprias vivências.
É a memória das experiências narradas por aqueles com quem
convivemos”, escreveu.
Blay conta que começou
essa pesquisa muitos anos atrás. E, durante bastante tempo,
não soube que forma dar ao material pesquisado. “Sem associar
uma coisa com a outra, eu tinha, nessa época, sonhos
recorrentes, nos quais ia para algum lugar e me perdia, não
encontrando mais o caminho de volta. Um dia, depois de ter
escrito e reescrito o livro muitas vezes, encontrei,
finalmente, a forma que procurava. E nunca mais tive aquele
sonho”, disse à Agência FAPESP.
A forma encontrada pela
autora foi dar voz aos entrevistados, destacando seus
depoimentos na primeira pessoa, e valorizando a “bagagem” de
cada um – uma “bagagem” peculiar, pois composta não apenas
pelas memórias da existência vivida nos países de origem, mas
também pela lembrança da vida construída aqui.
Seus 92 entrevistados
provieram de 16 países diferentes: Alemanha, Argentina,
Áustria, Bielorrússia, Egito, França, Hungria, Itália, Líbano,
Lituânia, Palestina, Polônia, Romênia, Rússia, Ucrânia,
Uruguai. Ou nasceram no Brasil, filhos de pais estrangeiros.
Mas, a despeito das muitas diferenças, apresentavam três
características em comum: eram judeus, idosos e estavam aqui
“para ficar”.
Destino definitivo
“Todos os imigrantes que
eu havia estudado no Brasil tinham a fantasia de, um dia,
voltar para suas terras de origem. Constatei tal fantasia
nostálgica entre os italianos, os portugueses, espanhóis. Mas
não entre os judeus. E isso devido às próprias condições que
os fizeram vir para cá. A volta não estava em seu ideário. Até
porque, para muitos deles, simplesmente não havia para onde
voltar. Guerras e acordos de paz de duração temporária tinham
retraçado fronteiras e redefinido o estatuto político das
regiões de origem. Para esses judeus, o Brasil era visto como
o destino definitivo”, afirmou Blay.
Muitos deles, nascidos
nos shtetlach (plural de shtetl), as pequenas aldeias de
população predominantemente judaica da Europa Oriental, com
sua vida sem perspectivas, viam no Brasil a promessa de um
Eldorado. E mesmo aqueles que vieram de cidades grandes e
cultas, como Berlim ou Varsóvia, puderam desfrutar aqui de uma
liberdade muito mais evidente.
“Fugindo de situações
adversas na Europa – pogroms, serviço militar rude e
escravizante, pobreza, proibição de mobilidade geográfica,
carência de direitos civis – encontraram no Brasil uma
situação incomparavelmente mais branda, porém cheia de
armadilhas”, escreveu Blay, referindo-se a um antissemitismo
que, sem assumir as formas aberrantes manifestadas no
continente europeu, jamais deixou de existir no país.
A pesquisa de Blay
concentrou-se muito mais sobre a comunidade asquenazita (do
hebraico ashquenazi), proveniente da Europa, majoritariamente
nas primeiras décadas do século XX, do que sobre a comunidade
sefardita (do hebraico sepharadhi), proveniente da Península
Ibérica e do Oriente Médio, cuja presença remonta aos tempos
coloniais, mas que cresceu no Brasil após a chamada “Crise do
Canal de Suez”, em 1956.
Seu rol de entrevistados
incluiu figuras de todas as classes sociais, além de alguns
notáveis, como o físico Mario Schenberg (1914 – 1990), a
escritora Tatiana Belinky (1919 – 2013) e a filantropa Ema
Gordon Klabin (1907 – 1994).
Filho de pais não
religiosos, Schenberg, que nasceu em Recife, iniciou seu
depoimento, em 1982, dizendo não possuir nenhum vínculo com o
judaísmo e expressou preocupação com o surgimento de uma nova
“onda internacional de antissemitismo”, motivada, em sua
opinião, pela política do Estado de Israel em relação ao povo
palestino.
Já Tatiana Belinky,
natural de São Petersburgo, Rússia, relatou, em 1983, o longo
empenho de seu marido, o médico psiquiatra Júlio Gouveia (1914
– 1988), um dos precursores da televisão no Brasil, para se
converter ao judaísmo. Em um evento talvez inédito no mundo,
Júlio, seu filho e seu neto fizeram juntos o Bar-Mitzvá, o
ritual de entrada na maioridade, que os meninos judeus cumprem
normalmente depois de completar 13 anos (o Bat-Mitzvá,
reservado para as meninas, é cumprido depois dos 12 anos).
Ema tem seu nome
associado, principalmente, à Fundação Cultural Ema Gordon
Klabin, um museu com mais de 1.500 objetos de arte, e ao
Hospital Israelita Albert Einstein, para cuja construção sua
contribuição financeira foi decisiva. Nascida no Rio de
Janeiro, em uma das famílias judias mais tradicionais do país,
ela herdou de seu pai, Hessel, nascido na Lituânia, sua
participação na indústria de papel e celulose Klabin, e se
destacou como colecionadora de arte, mecenas e filantropa. Foi
entrevistada em 1982.
Micro-história e a construção
da sociologia
Comentando estes e
outros depoimentos, Blay ressaltou o papel da história
pessoal, da “micro-história”, na construção da sociologia. “Eu
prefiro isso do que fazer as grandes generalizações. Foi um
movimento que iniciamos nos anos 1980, a Maria Isaura Pereira
de Queiroz, o Aziz Simão e eu. Buscávamos valorizar o
cotidiano, a vida real, os comportamentos individuais, sempre
respeitando os dados empíricos. E fomos muito criticados na
época.”
“Quando se trabalha com
histórias de vida, o cuidado a se tomar é considerar que as
pessoas contam uma determinada verdade, circunscrita ao
momento em que estão relatando. Não existe a verdade. Existe
uma memória, em um determinado momento, e essa memória tem que
ser considerada no contexto”, ponderou a socióloga.
Notável como história
pessoal foi o longo depoimento de Rifca Gutnik, que, na época
da entrevista, iniciada em 1982 e continuada por alguns anos,
morava no Lar dos Velhos, mantido pela Sociedade Israelita.
Nascida na antiga Bessarábia, Rifca teve de abandonar os
estudos depois que Alexander Cuza (1857 – 1946), considerado o
Hitler romeno, proibiu o ensino de ídiche nas escolas.
Tornou-se operária desde
muito cedo e, como tal, liderou uma greve contra as condições
absolutamente desumanas de trabalho, sem horário para
refeição, sem remuneração adicional para serviço noturno, sem
direito nenhum. A greve resultou vitoriosa, mas Rifca foi
demitida. Desempregada, emigrou, depois de um tempo, para o
Brasil, onde seu namorado e futuro marido, Velvel, já estava.
Aqui, participou, no Rio
de Janeiro, do Arbeter Center, que promovia atividades
educacionais e culturais e mantinha um restaurante para
trabalhadores. Depois da fracassada insurreição da Aliança
Nacional Libertadora, em 1935, Velvel foi preso como
comunista. Após horas exposta ao sol na porta do presídio,
esperando pela permissão para visitar o marido, Rifca perdeu
sua filha, Clara, vítima de insolação. Perderia também o
marido, deportado para campo de concentração.
“A história de Rifca
teve um efeito profundo sobre mim”, escreveu Blay. “Depois de
tê-la entrevistado no Lar dos Velhos, passei a visitá-la
regularmente”. Rifca participava ativamente da vida no Lar.
Costurava na máquina que ela mesma havia doado; lia livros em
português, russo, ídiche e alemão; organizava, com seus
próprios discos, audições de música erudita e folclórica para
os demais moradores; mantinha-se atualizada com a leitura
diária de dois jornais. E ajudou Blay em sua pesquisa,
traduzindo um livro sobre a história de Britchon, o shtetl onde nascera em 1905.
A ideia de fazer pelos
outros, que, a despeito de todas as vicissitudes, deu sentido
à vida de Rifca, está fortemente assentada no conceito judaico
de tzedaká, que pode ser traduzido como “justiça” ou
“retidão”. Exemplo de tzedaká foi o intenso trabalho
voluntário desenvolvido pela professora Betty Lafer (1909 –
2006), nascida em Schirvint, na Lituânia, e diplomada em
Araraquara, no Brasil.
Depois de anos no
magistério, casada e com os filhos criados, Betty passou a
atuar como voluntária na Organização Feminina Israelita de
Assistência Social (Ofidas), e, posteriormente, na União
Brasileiro-Israelita do Bem-Estar Social (Unibes), da qual se
tornou presidente de honra. Ela foi entrevistada em 1982.
O trabalho social foi,
para muitos desses imigrantes, a principal forma de praticar o
judaísmo. “A geração que entrevistei não era especialmente
religiosa”, afirmou Blay. “O máximo de sua religiosidade se
resumia à observância das três datas principais do judaísmo:
Rosh Hashaná (Ano Novo), Iom Kippur (Dia do Perdão) e Pessach
(Páscoa). A geração atual é muito mais voltada para a
religião, inclusive para a ortodoxia. Alguns filhos ou netos
dos imigrantes daquela geração agora usam roupas tradicionais,
casam-se com pessoas que fazem parte do mesmo grupo e
aprofundam-se no estudo da religião. É uma nova tendência que
deveria ser estudada”, concluiu.
(*) Conforme Os judeus no
Brasil Colonial, de Arnold
Wiznitzer (São Paulo, Livraria Pioneira Editora, Editora da
Universidade de São Paulo, 1966), e Breve história
dos judeus no Brasil, de
Salomão Serebrenick (disponível emhttp://tryte.com.br/colecaojudaismo/livro10.htm).
Título: O
Brasil como destino: raízes da imigração judaica contemporânea
para São Paulo
Autora: Eva Alterman Blay
Editora: Editora Unesp
Ano: 2013
Páginas: 424
Preço: R$ 76,00
Vendas e mais informações: www.editoraunesp.com.br/catalogo/9788539304912,brasil-como-destino-o
Autora: Eva Alterman Blay
Editora: Editora Unesp
Ano: 2013
Páginas: 424
Preço: R$ 76,00
Vendas e mais informações: www.editoraunesp.com.br/catalogo/9788539304912,brasil-como-destino-o
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.