Guerra contra o Paraguai
Por Mário Maestri em 17/05/2010
Acima, pintura retratando a Batalha do Riachuelo.
A guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história brasileira da segunda metade do século 19. As ações militares iniciaram-se em 12 de outubro de 1864, com a invasão brasileira do Uruguai, e concluíram-se em 1 de março de 1870, com a morte de Francisco Solano López, em Cerro Corá, no interior paraguaio.
Dos cento e quarenta mil soldados brasileiros convocados para o confronto, cinqüenta mil teriam morrido nos combates ou devido a ferimentos e doenças. O financiamento do enorme esforço militar comprometeu por mais de uma década as já frágeis finanças brasileiras.
A guerra tencionou política, social e economicamente o Brasil, desvelando o profundo anacronismo do Estado imperial escravista, despreparado e inadaptado para um esforço militar nacional. As conseqüências políticas do conflito foram profundas.
Durante a guerra, a luta abolicionista, principal questão política e social nacional, imobilizou-se sob a retórica da união diante do inimigo externo. Liberais e conservadores apoiaram uma intervenção rejeitada pelas classes subalternizadas, sem que qualquer força política nacional se opusesse a ela.
Narrativas apologéticas
As primeiras narrativas de vocação historiográfica sobre o conflito foram construídas após sua conclusão, nos últimos anos do Império. O golpe republicano de 1889 deu-se sob a égide da alta oficialidade do Exército, principal interessada na consolidação dessas leituras apologéticas.
Esses trabalhos pioneiros foram sobretudo obra de oficiais combatentes. Eles construíram-se através da seleção e organização dos discursos apologéticos desenvolvidos pelo Estado e pelas elites imperiais durante o confronto.
As leituras apologéticas imperiais foram ampliadas após 1889. As forças armadas republicanas elevaram à situação de figuras paradigmáticas oficiais monárquicos – Caxias, Osório, Tamandaré – que intervieram com destaque no conflito, o mais importante jamais combatido pelo Estado brasileiro.
Para apoiar a idéia de que a intervenção militar constituiu uma reação ao ataque dos territórios brasileiros, esses relatos propuseram comumente como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor brasileiro Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, e não a intervenção brasileira, um mês antes, contra o governo constitucional uruguaio, apoiado pelo Paraguai.
Apologia militar
A historiografia nacional-patrió tica brasileira propôs que a guerra fosse contra a ditadura deSolano López, e não contra o povo paraguaio. Mesmo se o Império e a Argentina tenham anexado parcelas dos territórios paraguaios, transformando o país em uma verdadeira republiqueta, dizimando literalmente sua população – autores estimam redução de até 69% da população paraguaia.
As narrativas historiográficas áulicas defrontaram- se com grave paradoxo. Como explicar o imenso esforço militar, as baixas multitudinárias e os mais de cinco anos necessários para vergar, em aliança com a Argentina e o Uruguai, uma nação de importância regional menor.
Acima, pintura retratando Solano Lopes.
Em geral, explicou-se a paradoxal resistência como resultado de preparação militar prévia e do fanatismo guarani, promovidos por Solano López. A indiscutível marcialidade paraguaia prosseguiu como espécie de Esfinge exigindo decifração e dificultando que a guerra galvanizasse o imaginário patriótico brasileiro.
Nos anos 1930, a historiografia paraguaia autonomizou- se das narrativas das nações vencedoras, relendo os sucessos em geral num sentido patriótico-nacionali sta. Na década de 60 e 70, narrativas historiográficas de inspiração latino-americanista propuseram nova ótica analítica.
Negócio genocida
Em 1968, León Pomer lançou na Argentina La guerra del Paraguay: um gran negócio, e em 1979, Júlio José Chiavenato publicou no Brasil Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. Esses trabalhos criticavam duramente a intervenção e ação da Tríplice Aliança.
Em geral, esse revisionismo apresentou a guerra como ação imperialista e genocida apoiada pelos ingleses e explicou a resistência paraguaia a partir de pretenso caráter modernizador do Estado lopizta. Destacou também a importância dos cativos libertados para lutarem nas tropas brasileiras.
Apesar dos importantes lapsos factuais e interpretativos, empreendia-se tentativa de análise das formações sociais envolvidas na guerra e de crítica geral da historiografia patriótico-imperiali sta. Procurava-se narrar os acontecimentos desde a ótica das populações envolvidas na guerra fratricida, e não das classes dominantes.
Genocídio americano: a Guerra do Paraguai obteve grande sucesso e influenciou o imaginário histórico brasileiro porque galvanizou a difusa memória do rosário de horrores que fora a guerra, até então semi-soterrado pelo discurso patriótico. O livro constituiu posicionamento contra a ditadura militar, durante a qual foi publicado.
A queda do muro
Em fins dos anos 1980, a vitória da contra-revoluçã o liberal aprofundou poderosamente a hegemonia mundial do capitalismo, ensejando correspondente recuo das representações ideológico-culturais que se apoiavam no mundo do trabalho e procuravam interpretar o passado a partir de sua ótica.
No campo historiográfico, decretou-se o fim da história como ciência e da interpretação essencial do passado para compreensão e transformação do presente. A história da "vida privada", do "imaginário", do "singular", do "exótico", etc. recuou os esforços analítico-interpreta tivos sistemáticos do passado.
A rejeição das "narrativas totalizantes" valorizou a proposta das novas histórias política e cultural que terminou restaurando as velhas interpretações idealistas e subjetivistas do passado. A história voltou a ser lida prioritariamente como produto da ação errática de protagonistas excelentes e os fenômenos sociais, como produto de determinações ideológico-culturais .
No relativo à guerra contra o Paraguai, novas narrativas críticas do revisionismo dos anos 1960-70, definido como autoritário, populista, etc., empreenderam a restauração das grandes propostas interpretativas nacional-patrió ticas imperiais e republicanas.
Maldita guerra
O livro Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai, do historiador Francisco Doratioto, lançado pela Companhia das Letras, por sua qualidade, excelência e erudição, constitui exemplo paradigmático do assinalado restauro historiográfico.
Originalmente tese de doutoramento, esse extenso trabalho – quase quinhentas páginas de texto -, critica explicitamente o revisionismo paraguaio e latino-americanista s, propondo realizar nova e mais equilibrada leitura dos fatos. A grande intimidade do autor com o tema e com a região do confronto explicita-se na valiosa revisão bibliográfica e documental que apresenta, transformando seu estudo em obra de referência sobre esse domínio historiográfico.
Nos anos 1960, a historiografia latino-americanista avançara o conhecimento historiográfico ao ressaltar a necessidade da elucidação do caráter das sociedades em luta, em geral, e do Paraguai, em especial, mesmo se fracassara na resolução da equação que propunha. Efetivamente, uma das singularidade do conflito foi antepor três grandes nações – Argentina, Brasil e Paraguai – organizadas a partir de formas de produção e de formações sociais divergentes.
Nos anos 1860, na Argentina imperava o trabalho livre, enquanto no Brasil dominava a escravidão. Portanto, a Argentina e o Brasil eram organizados por modos de produção díspares, apesar de igualmente assentados nas trocas mercantis e na propriedade privada dos meios de produção. No Paraguai, o Estado detinha grande parte da produção e da propriedade. Francisco Doratioto lembra que o "Estado guarani" era "dono" "de quase 90% do território nacional", controlando "praticamente" uns "80% do comércio interno e externo".
Nação guarani
Mesmo assim, o autor – que utiliza as locuções "país guarani" e "nação guarani" como sinônimos de Paraguai -, jamais discute as conseqüências dessa formação sócio-econômica singular para uma população guarani com profundas raízes camponesas, comunitárias e missioneiras. Nacionalidade que desbordava as fronteiras paraguaias.
Francisco Doratioto empreende minuciosa e elucidativa análise política, diplomática e militar dos sucessos. Porém, não contextualiza as sociedades em questão, procedendo verdadeira homogeneização das formações sociais envolvidas no confronto.
Falta de contextualizaçã o histórica que termina resultando por exemplo no uso anacrônico de categorias como "povo", "cidadão", "opinião pública", etc. para a formação social escravista brasileira, na qual grande parte da população encontrava-se total ou parcialmente, nos fatos ou legalmente, à margem da cidadania.
A abordagem essencialmente política dos fenômenos impossibilita explicação essencial da belicosidade paraguaia e letargia brasileira, responsáveis pela perpetuação do conflito. O que leva o autor a propor a tenacidade guarani como produto da fanatização e controle policial. "Apesar dessa situação, quase não havia deserções nas fileiras paraguaias, devido ao clima de terror imposto por Solano López, que estendia a punição a familiares e companheiros do desertor."
Marcialidade servil
A explicação da marcialidade como produto da fanatização e da ação policial não se coaduna com uma nação com Estado, exército e meios de comunicação rústicos e, portanto, propícios à deserção de soldados tiranizados. Essas teses não explicam a rearticulação da resistência por Solano López, nos sertões paraguaios, após ter perdido a capital e o controle do aparelho estatal. Foram os exércitos brasileiros, argentinos e uruguaios que conheceram deserções ininterruptas e relevantes.
Francisco Doratioto deduz a origem e a evolução do conflito da personalidade de Solano López, sobre quem lança a responsabilidade total da guerra. Isso, apesar de apresentar corretamente o confronto como tendencialmente inevitável, devido à procura da nação guarani de maior espaço regional e à negativa dos governos brasileiro e argentino de concedê-lo.
A personalização da história empreendida em Maldita guerra, por Franciso Doratioro, resulta no elogio das apologética das lideranças da Tríplice Aliança – Pedro II, Mitre, Caxias, Osório, etc. -, e na diabolização de Solano López, identificado a Hitler, ingênua personificação moderna da violência social na história.
Doratioto propõe como "identidade entre os dois ditadores" o fato de usarem jovens e velhos em desesperada resistência que teria comprometido seus países. A aproximação é anacrônica e esquece que foram os objetivos e práticas que desqualificaram o nazismo, e não a resistência inexorável, com jovens e velhos armados, utilizada licitamente pela população soviética contra o avanço fascistas.
Negros imprestáveis
Em geral, a retórica desabonadora estende-se às elites, aos oficias e aos soldados paraguaios, apresentados dedicados sistematicamente ao massacre, ao estupro e ao roubo, ainda que se convenha que, em certos momentos, os soldados aliados procedessem de igual modo.
A narrativa termina sugerindo ter constituído o conflito um choque entre o Brasil, nação monárquica, constitucional e liberal, e o Paraguai, Estado despótico, autocrático e atrasado, uma outra grande tese apologética brasileira, antes, durante e após a guerra.
No mesmo sentido, jamais se discute a possibilidade da inesperada duração dos combates dever-se ao confronto desigual entre um Estado escravista e uma nação de homens livres, desequilíbrio superado apenas pela desproporção de recursos entre o Brasil e o Paraguai.
A importante determinação dos combates pela essência escravista do Estado brasileiro, foi percebida por Caxias. O velho verdugo de cativos referiu-se a essa realidade ao execrar a qualidade militar dos libertos, "homens que não compreendem o que é pátria, sociedade e família, que se consideram ainda escravos [...]".
Servidão e liberdade
Apreciação compartida pelo coronel José Antonio Corrêa da Câmara, que explicou o fracasso de assalto à posição paraguaia por "nossos soldados de infantaria" serem "os negros mais infames deste mundo, que chegam a ter medo até do inimigo que foge".
Esqueciam os oficiais escravistas que os negros pusilânimes, no Paraguai, sob a bandeira do Império, tinham sido os mais valorosos soldados de Artigas, no Uruguai, sob a bandeira da luta pela liberdade, décadas antes.
Não enfrentando as questões estruturais subjacentes ao conflito, a narrativa termina assumindo tom claramente nacional-patrió tico, como quando propõe que os verdadeiros heróis aliados seriam "os [combatentes] que viveram" nas duras condições de Tuiuti, "durante dois anos, sem desertar ou pretextar doença".
Inaceitável julgamento de valor sobre os atos dos milhares de soldados brasileiros, argentinos e uruguaios que tiveram a sabedoria de obedecer ao sábio preceito plebeu que, se "Deus é grande, o mato é maior", escafedendo- se de uma guerra das elites abominada pelas populações dos subalternizadas.
Protagonistas ausentes
Restringido à descrição a uma indiscutivelmente rica e valiosa narrativa política, diplomática e militar dos fatos, explicando as suas origens e dinâmicas a partir sobretudo da ação de protagonistas ilustres, Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai, de Francisco Doratioto, jamais se debruça efetivamente sobre os grandes protagonistas dos acontecimentos estudados.
Portanto, permanece a necessidade de análise que explique o sentido e as razões profundas da indiscutível adesão da população paraguaia a Solano López, durante a ofensiva na Argentina e no Brasil e, sobretudo, quando da defesa dos territórios nacionais guaranis invadidos pelas tropas brasileiras e argentinas.
Em lugar da explicação da ação das massas na história a partir da intervenção de personagens providenciais, impõe-se o entendimento da gênese de lideranças carismáticas, por mais exóticas, contraditória e desalinhadas que sejam, como expressões, diretas ou oblíquas, de forças e interesses sociais profundos.
A análise estrutural das condições de vida, objetivos e aspirações das classes populares e servis brasileiras, associada ao estudo da realidade que conheceram sob a bandeira do Império, contribuirá para que finalmente se revele, segredos que a guerra contra o Paraguai teima em esconder.
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Texto publicado em janeiro de 2003 na revista eletrônica www.consciencia. net.
*Mário Maestri, é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS. E-mail: maestri@via- rs.net
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